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terça-feira, 1 de julho de 2025

Missão ou Narcisismo Imperial? A Teopolítica Ibérica à Luz de Kujawski

1. Introdução: Dois Impulsos, Dois Destinos

Em A Pátria Descoberta, Gilberto de Mello Kujawski distingue com acuidade os projetos expansionistas das coroas ibéricas: enquanto Portugal teria se lançado ao mar “sob um mandato do Céu”, a Espanha teria empreendido sua expansão como uma busca de si mesma¹. Essa diferença teopolítica não é meramente retórica. Ela se expressa concretamente nos modos de ocupação, nas motivações espirituais e nos impactos ecológicos. Para Kujawski, esse contraste é particularmente evidente na troca colombina, que assume, no caso espanhol, traços altamente destrutivos para os povos e o ecossistema do continente americano.

2. O Mandato do Céu: Portugal e a Missão Providencial

A concepção portuguesa da expansão marítima se vincula à ideia de missão cristã providencial. Desde o Milagre de Ourique (1139), a fundação do reino se percebe como ato de Deus, que orienta o povo português a desempenhar um papel único na história da salvação. Kujawski afirma que “o espírito de Portugal é o de um povo tocado pelo milagre e destinado a irradiá-lo pelas partes do mundo”¹.

O projeto marítimo lusitano foi articulado por uma teologia do serviço:

  • O Padroado Régio, legitimado por Roma, conferiu ao rei português o dever de evangelização nas terras descobertas;

  • A estrutura de feitorias, em vez de colônias, indica um modelo de convivência e não de substituição cultural;

  • A atuação de ordens religiosas, sobretudo os jesuítas, visava integrar os nativos à fé católica, respeitando, dentro dos limites da época, certas práticas culturais locais.

Essa missão não foi isenta de violência ou exploração, mas Kujawski entende que havia uma ordem espiritual orientando o gesto político, e não apenas o desejo de lucro ou glória nacional².

3. A Busca de Si Mesma: a Espanha e seu espelho no Novo Mundo

A Espanha entra na modernidade em um processo de unificação conflituosa. A expulsão dos mouros (1492) e dos judeus marca o fim de séculos de Reconquista, mas também inaugura uma crise de identidade. Kujawski escreve: “A Espanha, ao contrário de Portugal, partiu em busca de si mesma. No Novo Mundo, viu a si própria projetada e, por isso, destruiu”¹.

A ação espanhola nas Américas foi marcada por:

  • A implantação da encomienda, sistema que sujeitava indígenas à servidão;

  • A criação de vice-reinados com estrutura imperial fortemente hierarquizada;

  • A busca obsessiva por minérios preciosos, que levou à devastação de vastas regiões.

O Novo Mundo tornou-se para a Espanha um espelho de afirmação imperial. O outro não era interlocutor, mas obstáculo ou reflexo deformado do que o conquistador desejava ser. Isso explica, em parte, o grau de violência e destruição cultural que se seguiu.

4. A troca colombina como tragédia ecológica

O conceito de “troca colombina” foi elaborado por Alfred W. Crosby³ para descrever o intercâmbio biológico entre os dois mundos. No caso da conquista espanhola, Kujawski observa que essa troca foi “altamente destrutiva para o ecossistema do continente”¹. Alguns efeitos notórios incluem:

  • A introdução de doenças como varíola, sarampo e gripe, que dizimaram populações indígenas⁴;

  • A chegada de espécies exóticas como cavalos, gado e porcos, que alteraram profundamente os modos de vida locais;

  • A substituição de técnicas agrícolas sustentáveis por monoculturas de exportação;

  • O desmatamento massivo em função da mineração e da produção agrícola intensiva.

Enquanto os portugueses praticaram uma forma de colonização mais voltada ao comércio e à mediação cultural, os espanhóis impuseram um modelo extrativista e substitutivo, causando colapsos ecológicos e sociais de longo prazo.

5. Teopolítica da Conquista: Cristo ou César?

A teopolítica, enquanto disciplina que estuda o nexo entre fé e poder, ajuda a compreender a motivação profunda dos projetos ibéricos. Kujawski, ao estabelecer a diferença entre o mandato do Céu e a busca de si mesmo, opera uma distinção semelhante àquela entre Cristo e César.

Portugal, apesar de seus pecados históricos, agiu segundo uma “gramática da missão” — na qual o poder político é instrumento da fé. A Espanha, por sua vez, agiu segundo a “gramática da afirmação imperial”, na qual a fé é instrumento do poder. Por isso, os resultados são radicalmente distintos:

  • Em Portugal, há traços de mediação e convivência;

  • Na Espanha, há substituição, imposição e espoliação.

Essa leitura se aproxima da visão de Olavo de Carvalho, que afirmou que Portugal representa “a última flor da cristandade medieval”⁵ — uma civilização ainda não corrompida pela ânsia moderna de dominação.

6. Epílogo: Guadalupe e a Correção Providencial

A correção dos erros da conquista espanhola não se deu pela força das armas ou pela imposição das leis, mas pela ação direta da Providência. O milagre de Nossa Senhora de Guadalupe, ocorrido em 1531 — apenas dez anos após a queda de Tenochtitlán —, é o marco visível de que Cristo corrigiu os erros da Espanha por meio de sua Mãe.

A Virgem aparece a Juan Diego Cuauhtlatoatzin, um índio humilde, em sua própria língua, vestida com elementos culturais mesoamericanos, abrindo caminho para a conversão de milhões de nativos em poucos anos. A evangelização torna-se mariana, simbólica e amorosa — e não mais imperial, opressora ou militarizada.

Além disso, a história confirma essa reconciliação espiritual com um sinal político: a União Ibérica (1580–1640), quando Portugal e Espanha foram governados sob a mesma coroa por três gerações. Essa união:

  • restabelece a comunhão das missões católicas nos cinco continentes;

  • indica que Deus uniu aquilo que o orgulho ibérico havia separado;

  • confirma que, após a correção espiritual, a unidade civilizacional era possível nos méritos de Cristo⁶.

Essa união dura sessenta anos, número bíblico de purificação e aprendizado⁷. Após esse período, as coroas se separam, mas a memória do que foi unido permanece como modelo de cooperação cristã entre nações chamadas a servir o Reino de Deus.

7. Conclusão: Restaurar a Missão, Curar a Terra

O diagnóstico de Kujawski não é apenas histórico. Ele serve como chave hermenêutica para o presente. Toda civilização que busca a si mesma no outro, sem mandato divino, tende à destruição. Toda nação que age segundo uma vocação superior, mesmo com quedas, tende à edificação.

O milagre de Guadalupe, seguido da União Ibérica, demonstra que Cristo reina sobre a história das nações e as conduz à verdade por meio da misericórdia. Restaurar a missão portuguesa — entendida não como nostalgia imperial, mas como vocação cristã de mediação cultural e serviço à verdade — é uma forma de curar as feridas históricas da conquista. Mais que isso: é um caminho para compreender a própria identidade brasileira, fundada no encontro (e não na imposição) entre mundos.

Notas de rodapé

  1. KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A Pátria Descoberta. São Paulo: Imago, 1980, p. 25.

  2. Idem, p. 33.

  3. CROSBY, Alfred W. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Westport, CT: Greenwood Press, 1972.

  4. DIAMOND, Jared. Guns, Germs and Steel: The Fates of Human Societies. New York: W. W. Norton & Company, 1997.

  5. CARVALHO, Olavo de. “Portugal e a restauração do Ocidente cristão”. Jornal da Tarde, São Paulo, 1999.

  6. Cf. RODRÍGUEZ, Jaime. The Rise of the Spanish American Republics. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

  7. Cf. LEÃO XIII. Providentissimus Deus, 1893. A simbologia dos números bíblicos é amplamente reconhecida pela tradição exegética católica.

Referências Bibliográficas

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record, 2000.

CROSBY, Alfred W. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492. Westport, CT: Greenwood Press, 1972.

DIAMOND, Jared. Guns, Germs and Steel: The Fates of Human Societies. New York: W. W. Norton & Company, 1997.

KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A Pátria Descoberta. São Paulo: Imago, 1980.

LEÃO XIII. Providentissimus Deus. Vaticano, 1893.

PIO XI. Quas Primas. Vaticano, 1925. 

RODRÍGUEZ, Jaime E. The Rise of the Spanish American Republics. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

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