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domingo, 6 de julho de 2025

Por que Saelig supera The Sims como simulador da vida: uma crítica antropológica e histórica à simulação contemporânea

Resumo

Este artigo parte de uma afirmação ousada, mas precisa: Saelig supera The Sims como simulador da vida. Através de uma análise comparativa dos fundamentos ontológicos, históricos e antropológicos de ambos os jogos, argumenta-se que Saelig, por mais modesto em escala e orçamento, oferece uma simulação mais profunda, realista e moralmente significativa da existência humana. Enquanto The Sims representa a vida como um playground consumista de desejos, Saelig propõe a vida como um drama histórico intergeracional, enraizado em estruturas econômicas, sociais e espirituais.

1. Introdução

Em tempos de virtualidade acelerada, em que o mercado de jogos eletrônicos é dominado por gráficos hipnóticos e gratificação imediata, torna-se cada vez mais raro encontrar simuladores que tentem reproduzir a vida em sua complexidade histórica, econômica e espiritual. Contra todas as expectativas de mercado, surge um jogo como Saelig, desenvolvido por uma única pessoa, e que, sem alarde, oferece uma experiência de simulação da vida muito mais rica do que aquela proposta por gigantes da indústria como The Sims.

Afirmar que Saelig supera The Sims pode soar provocativo — e é. Mas é também uma constatação inevitável quando se analisa o que, de fato, esses jogos estão simulando. Um é uma boneca Barbie digital com barras de humor; o outro é um retrato orgânico da vida camponesa e urbana da Alta Idade Média e da Modernidade nascente, com morte real, herança, comércio, propriedade, tempo e religião. A seguir, desdobramos essa comparação.

2. A simulação em The Sims: o teatro do desejo burguês

Lançado em 2000, The Sims se consagrou como uma franquia de sucesso por oferecer ao jogador a possibilidade de "viver" uma vida paralela. Construir casas, escolher móveis, seguir uma carreira, se relacionar romanticamente, ter filhos. No entanto, toda essa simulação se resume a um modelo simplificado de consumo e expressão pessoal.⁽¹⁾

The Sims opera com símbolos funcionais, como barras de fome, energia, higiene, diversão. A vida não tem continuidade nem peso histórico. Os personagens não envelhecem de maneira significativa até que se ative tal função. Eles não deixam herança, não carregam dívida moral, não participam de estruturas sociais que os transcendem. Tudo está centrado no indivíduo e na sua satisfação momentânea.

Trata-se, portanto, de uma simulação voltada ao cotidiano burguês contemporâneo, onde o lar é um centro de conforto, onde a estética é mais importante que a funcionalidade, e onde o tempo não carrega gravidade existencial. Como produto, é brilhante. Como espelho da vida humana, é raso.

3. A simulação em Saelig: economia, morte, herança e transcendência

Saelig, por sua vez, é um jogo historicamente ambientado no século IX anglo-saxão, com ciclos de tempo que atravessam gerações. O jogador nasce, vive, trabalha, casa, tem filhos, pode prosperar ou fracassar — e morre. Mas sua história não acaba ali: o patrimônio passa adiante, o mundo segue, e o jogador pode continuar vivendo através de seus descendentes.

A vida aqui é vivida com peso e consequências:

  • Se você não comer, morre.

  • Se não trabalhar, empobrece.

  • Se não cuidar de seus negócios, perde tudo.

  • Se não casar ou ter filhos, sua linhagem termina.

E mais: o mundo não gira ao redor do jogador. O tempo passa, os eventos seguem seu curso, outros personagens também têm suas vidas, carreiras, casamentos, problemas e ambições. Isso confere ao jogo uma dimensão sistêmica e orgânica, ausente na maioria dos simuladores mainstream.⁽²⁾

Além disso, o jogo inclui elementos religiosos e sociais: rituais, festas, tributos, respeito pelos mortos, e um senso comunitário de pertencimento. A vida simulada em Saelig é relacional, econômica, histórica e espiritual. E isso o coloca em uma classe distinta.

4. Ontologia da simulação: desejos ou estruturas?

A principal diferença entre The Sims e Saelig reside na ontologia que cada jogo adota para representar a vida humana:

  • Em The Sims, a vida é uma sequência de desejos momentâneos; o tempo é uma moldura artificial para o consumo de objetos e relações. A “felicidade” é medida em sorrisos, decorações e status. A morte, quando vem, é um efeito dramático, reversível ou irrelevante.

  • Em Saelig, a vida é uma travessia histórica. A morte é certa. O tempo não pode ser ignorado. A estrutura econômica do mundo é realista: produtos têm escassez, preços variam, a geopolítica afeta o comércio. A família é núcleo da sobrevivência. O corpo envelhece, e o trabalho gera acúmulo ou ruína.

Essa diferença é radical. A primeira visão é moderna, hedonista e niilista. A segunda é pré-moderna, comunitária e realista.

5. O valor simbólico e educativo

Por fim, é preciso destacar que Saelig ensina o que The Sims jamais se propôs a ensinar: a relação entre o tempo e a responsabilidade, a importância da continuidade familiar, o impacto da vida econômica bem ou mal conduzida, e o valor da experiência comunitária.

Mesmo custando apenas R$ 27,00 na época de seu lançamento, Saelig oferece uma experiência com alto retorno simbólico e formativo. É um jogo que pode transformar a maneira como alguém entende história, economia, trabalho, tempo e família. Já The Sims oferece o que ele de fato promete: entretenimento cosmético, leve e sem consequências. Ambos têm seu valor — mas apenas um se aproxima da vida como ela realmente é.

6. Conclusão

A afirmação de que Saelig supera The Sims enquanto simulador da vida não é mero juízo de gosto — é um diagnóstico ontológico e antropológico. Em um tempo onde tudo tende à leveza e à superficialidade, Saelig lembra que a vida é pesada, demorada, marcada por estruturas invisíveis que sustentam sua continuidade.

E talvez seja por isso que jogos como ele sejam desenvolvidos por artistas solitários, como aqueles mestres artesãos que, na penumbra das catedrais medievais, assentavam cada pedra com a certeza de que jamais veriam a obra pronta — mas com a fé de que ela serviria a gerações.

Referências

GALLOWAY, Alexander R. Gaming: Essays on Algorithmic Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006.

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

WINKLER, Robert. Saelig. Steam Store. Disponível em: https://store.steampowered.com/app/794260/Saelig/. Acesso em: 06 jul. 2025.

WRIGHT, Will. Entrevistas e comentários sobre o design de The Sims. Em: Game Developer Conference Archives, 2000–2004.

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