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segunda-feira, 7 de julho de 2025

Nine Provinces: Caravan — um voo de morcego na China Imperial

Comprei Nine Provinces: Caravan por duas razões muito claras. A primeira é que se trata de um jogo muito bem avaliado na Steam, daqueles que surpreendem pela profundidade apesar de terem sido feitos por desenvolvedores independentes. A segunda razão, talvez ainda mais decisiva, é sua ambientação: trata-se de um tycoon comercial situado na China Imperial — um tipo de jogo praticamente inexistente no Ocidente.

Essa ausência de paralelos culturais e mecânicos com os jogos tradicionais do nosso mercado já seria, por si só, motivo de curiosidade e estudo. Mas Nine Provinces: Caravan impõe uma barreira adicional para quem não lê chinês: ele está disponível apenas em Chinês Tradicional, sem tradução oficial para o inglês ou qualquer outro idioma ocidental.

Se hoje decido enfrentar essa barreira, é porque temos recursos que antes simplesmente não existiam. Jogar esse jogo me remete a uma memória dos anos 90: meu pai, ao se deparar com jogos japoneses de Mega Drive, dizia que eu só poderia jogá-los se aprendesse japonês. A ideia era desafiadora demais para a época. Além das limitações tecnológicas — não havia internet, YouTube nem inteligência artificial —, havia também as circunstâncias geográficas. Somos do Rio de Janeiro, uma região que praticamente não recebeu imigrantes japoneses¹. Como a maioria deles era formada por agricultores, muitos se estabeleceram no interior de São Paulo, e os mais empreendedores ajudaram a fundar o bairro da Liberdade, em São Paulo capital². A colônia japonesa mais próxima de casa ficava a cerca de 600 quilômetros de distância, o que, na prática, inviabilizava qualquer tentativa concreta de aprendizado da língua ou contato com aquela cultura.

Hoje, estando no computador, faço screenshots das telas do jogo e envio essas imagens para o ChatGPT, que funciona como um radar, traduzindo os ideogramas e me ajudando a compreender o que está sendo dito. Assim, transformo esse antigo voo às cegas num voo de morcego: continuo rumando ao desconhecido, mas agora com orientação.

Esse radar me permite não apenas jogar, mas também compreender a lógica cultural do jogo, seus valores e sua estrutura interna. É uma forma de imersão linguística e histórica que nenhum curso formal pode oferecer. No lugar de manuais didáticos, a motivação lúdica se torna um catalisador de aprendizado real, prático, encarnado no esforço constante de entender o outro através de sua língua, de sua estética e de sua organização do mundo.

Nine Provinces: Caravan, portanto, não é apenas um jogo. É uma ponte para o que há de mais particular na mentalidade chinesa: o comércio, a ordem imperial, a fluidez das relações, a tradição. E ao mesmo tempo, é uma oportunidade rara de experimentar esse universo a partir de uma perspectiva ativa, não como espectador, mas como participante — ainda que estejamos tateando nas sombras.

Notas de Rodapé

  1. Imigração japonesa no Brasil: Embora o Brasil seja o país com a maior comunidade japonesa fora do Japão, a maior parte dos imigrantes estabeleceu-se no estado de São Paulo, especialmente em áreas agrícolas como Bastos, Registro e Pereira Barreto. O Rio de Janeiro teve participação bem menor nesse processo.

  2. Bairro da Liberdade: Originalmente habitado por imigrantes italianos e portugueses, o bairro começou a se transformar num polo da cultura japonesa a partir da década de 1930. Hoje é símbolo da presença japonesa em São Paulo e sede de eventos culturais, templos budistas, escolas de idioma e lojas especializadas.

Bibliografia comentada

  • Tsuda, Takeyuki. Japanese Brazilian Ethnicity and Community Formation.
    Estudo sociológico sobre como os japoneses se estabeleceram no Brasil e como criaram redes de apoio que deram origem a bairros étnicos como a Liberdade. A obra oferece um bom panorama da questão geográfica e econômica da imigração.

  • Linger, Daniel Touro. Dangerous Encounters: Meanings of Violence in a Brazilian City.
    Ainda que o foco do livro seja a violência urbana, ele fornece um retrato útil da distância cultural entre o Rio de Janeiro e a imigração japonesa, mencionando a ausência de presença japonesa significativa na cidade.

  • Associação Brasileira de Estudos sobre Games (ABRAGAMES). História dos Jogos no Brasil: Dos Clones aos Indies.
    Traz contexto histórico dos jogos japoneses no Brasil nas décadas de 80 e 90, destacando o papel do Mega Drive e da Sega, que teve forte influência oriental nos seus lançamentos — frequentemente sem tradução ou localização.

  • DeFrancis, John. The Chinese Language: Fact and Fantasy.
    Excelente introdução ao sistema de escrita chinês e às dificuldades enfrentadas por quem tenta aprender a língua com base em exposição informal, como jogos. Útil para entender os desafios de quem enfrenta o idioma sem formação prévia.

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