Comprei Nine Provinces: Caravan por duas razões muito claras. A primeira é que se trata de um jogo muito bem avaliado na Steam, daqueles que surpreendem pela profundidade apesar de terem sido feitos por desenvolvedores independentes. A segunda razão, talvez ainda mais decisiva, é sua ambientação: trata-se de um tycoon comercial situado na China Imperial — um tipo de jogo praticamente inexistente no Ocidente.
Essa ausência de paralelos culturais e mecânicos com os jogos tradicionais do nosso mercado já seria, por si só, motivo de curiosidade e estudo. Mas Nine Provinces: Caravan impõe uma barreira adicional para quem não lê chinês: ele está disponível apenas em Chinês Tradicional, sem tradução oficial para o inglês ou qualquer outro idioma ocidental.
Hoje, estando no computador, faço screenshots das telas do jogo e envio essas imagens para o ChatGPT, que funciona como um radar, traduzindo os ideogramas e me ajudando a compreender o que está sendo dito. Assim, transformo esse antigo voo às cegas num voo de morcego: continuo rumando ao desconhecido, mas agora com orientação.
Esse radar me permite não apenas jogar, mas também compreender a lógica cultural do jogo, seus valores e sua estrutura interna. É uma forma de imersão linguística e histórica que nenhum curso formal pode oferecer. No lugar de manuais didáticos, a motivação lúdica se torna um catalisador de aprendizado real, prático, encarnado no esforço constante de entender o outro através de sua língua, de sua estética e de sua organização do mundo.
Nine Provinces: Caravan, portanto, não é apenas um jogo. É uma ponte para o que há de mais particular na mentalidade chinesa: o comércio, a ordem imperial, a fluidez das relações, a tradição. E ao mesmo tempo, é uma oportunidade rara de experimentar esse universo a partir de uma perspectiva ativa, não como espectador, mas como participante — ainda que estejamos tateando nas sombras.
Notas de Rodapé
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Imigração japonesa no Brasil: Embora o Brasil seja o país com a maior comunidade japonesa fora do Japão, a maior parte dos imigrantes estabeleceu-se no estado de São Paulo, especialmente em áreas agrícolas como Bastos, Registro e Pereira Barreto. O Rio de Janeiro teve participação bem menor nesse processo.
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Bairro da Liberdade: Originalmente habitado por imigrantes italianos e portugueses, o bairro começou a se transformar num polo da cultura japonesa a partir da década de 1930. Hoje é símbolo da presença japonesa em São Paulo e sede de eventos culturais, templos budistas, escolas de idioma e lojas especializadas.
Bibliografia comentada
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Tsuda, Takeyuki. Japanese Brazilian Ethnicity and Community Formation.
Estudo sociológico sobre como os japoneses se estabeleceram no Brasil e como criaram redes de apoio que deram origem a bairros étnicos como a Liberdade. A obra oferece um bom panorama da questão geográfica e econômica da imigração. -
Linger, Daniel Touro. Dangerous Encounters: Meanings of Violence in a Brazilian City.
Ainda que o foco do livro seja a violência urbana, ele fornece um retrato útil da distância cultural entre o Rio de Janeiro e a imigração japonesa, mencionando a ausência de presença japonesa significativa na cidade. -
Associação Brasileira de Estudos sobre Games (ABRAGAMES). História dos Jogos no Brasil: Dos Clones aos Indies.
Traz contexto histórico dos jogos japoneses no Brasil nas décadas de 80 e 90, destacando o papel do Mega Drive e da Sega, que teve forte influência oriental nos seus lançamentos — frequentemente sem tradução ou localização. -
DeFrancis, John. The Chinese Language: Fact and Fantasy.
Excelente introdução ao sistema de escrita chinês e às dificuldades enfrentadas por quem tenta aprender a língua com base em exposição informal, como jogos. Útil para entender os desafios de quem enfrenta o idioma sem formação prévia.
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