I. Introdução: uma narrativa ordinária sob a luz do extraordinário
No universo simulado de The Sims 4, onde cada escolha modela destinos, vivi recentemente uma experiência que, à primeira vista, pareceria simples: um Sim com elevada habilidade em mecânica ensina sua namorada a esculpir, e, em gratidão, ela lhe presenteia com um violão feito por suas próprias mãos. Contudo, quando lida à luz da tradição cristã, essa experiência revela-se como uma rica alegoria da economia da salvação.
Esse artigo pretende demonstrar como um gesto de amor fundado na reciprocidade e na formação pode ser entendido como ato soteriológico — ou seja, inserido na dinâmica concreta da salvação que passa pelo corpo, pelo trabalho, pela cultura e pelo dom.
II. O princípio da economia da salvação
A expressão “economia da salvação” refere-se, na teologia cristã, ao modo como Deus dispôs todas as coisas para conduzir a humanidade à salvação através de uma economia — oikonomia, em grego —, ou seja, uma administração sábia, gradual e encarnada da graça ao longo do tempo.
Nessa economia divina, tudo que é verdadeiro, belo e bom pode tornar-se instrumento de salvação — inclusive um violão feito artesanalmente, dentro da realidade de um jogo eletrônico, quando tal gesto for expressão de amor gratuito, de retribuição virtuosa e de desejo de elevar o outro.
III. A pedagogia da liberdade no dom
Ao ensinar carpintaria à sua companheira, o Sim realiza um ato de serviço pedagógico, transmitindo uma habilidade concreta que amplia a liberdade da outra. Isso é mais do que ensinar: é libertar. E essa libertação não é egoísta, mas generativa: ela dá origem a um dom (o violão) que, por sua vez, se tornará meio de sustento, cultura e missão pública.
Aqui vemos uma dinâmica de graça que gera graça: o dom recebido (o ensino) é devolvido, não na mesma moeda, mas transfigurado — o que nos lembra que a gratidão, quando cristã, é criativa, não repetitiva. Tal como o Cristo que, recebendo do Pai, nos entrega sua vida, também o discípulo cristão, ao receber, entrega-se com liberdade.
Esse é o ciclo da economia da salvação: tudo começa na graça, é acolhido com liberdade e volta como dom, agora enriquecido, à comunidade e ao próprio Deus.
IV. Ubogi e bogaty: o intercâmbio que santifica
A tradição polonesa expressa bem essa tensão frutuosa entre o pobre (ubogi) e o rico (bogaty). O bogaty é rico não apenas de bens, mas de estrutura, de saber, de ordem. O ubogi, por sua vez, é carente, sim, mas também chamado à elevação por meio de uma relação justa com o dom que recebe.
Na narrativa que vivi, o Sim é o bogaty — tem conhecimento, espaço, estrutura. A namorada é uboga — recebe dele não esmola, mas ensinamento e abrigo. E o que faz ela? Ao invés de se manter passiva, retribui criando um instrumento que devolverá ao bogaty a possibilidade de servir ainda mais ubogis através da cultura.
Isso é capitalização moral: o dom recebido se converte em instrumento que promove o bem comum. O violão, nesse contexto, torna-se símbolo de um empreendedorismo cristão, onde o capital não é acúmulo ganancioso, mas serviço organizado e frutífero.
V. A verdade como fundamento da liberdade
A liberdade que aqui se manifesta — tanto na partilha do conhecimento quanto na criação do instrumento — está fundada na verdade, e não na arbitrariedade ou na autossuficiência. O ensino do Sim é verdadeiro, porque nasce do que ele realmente sabe. O gesto da namorada é verdadeiro, porque brota do reconhecimento justo do dom recebido.
Cristo afirmou: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32). Esta narrativa confirma esse princípio: quando a verdade é transmitida com amor, ela gera liberdade; e quando a liberdade é exercida com gratidão, ela gera cultura e serviço.
A verdade aqui não é só um conjunto de dados, mas um modo de vida fundado no mérito do verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, aquele que santifica os gestos do cotidiano e os transforma em degraus para o Céu.
VI. Conclusão: o violão como ícone do Reino
Na economia da salvação, nada é perdido. Tudo pode ser aproveitado se for ofertado com o coração puro e orientado para o bem comum. Um violão feito artesanalmente numa oficina simples, após uma tempestade, pode tornar-se símbolo de algo muito maior: o Reino de Deus que se constrói nas pequenas fidelidades, nos talentos partilhados, nas mãos que amam e trabalham.
Que cada um de nós possa ser, à sua maneira, um artesão de instrumentos que libertam — no corpo, no saber, na cultura, na graça. Pois no final, é o próprio Cristo quem transforma cada gesto verdadeiro em parte de Sua economia redentora.
Bibliografia Comentada
1. Catecismo da Igreja Católica.
§1076–1209 (Parte II: A celebração do mistério cristão)
Fundamenta a noção de economia sacramental da salvação, ou seja, como Deus dispôs os sinais sensíveis (e os gestos concretos da vida humana) como vias eficazes de graça. A experiência do violão e da carpintaria se insere, por analogia, nesse mesmo esquema.
2. João Paulo II. Laborem Exercens. Carta Encíclica sobre o trabalho humano (1981).
O trabalho é participação na obra criadora de Deus. O gesto de ensinar carpintaria e o gesto de esculpir um violão são expressão concreta do trabalho como vocação e dom, fundamento da dignidade humana.
3. Bento XVI. Caritas in Veritate. Encíclica sobre o desenvolvimento humano integral (2009).
“Sem verdade, a caridade desliza para o sentimentalismo” (n. 3). Aqui se reforça a tese de que a verdade é o fundamento da liberdade — a base para qualquer relação moral autêntica e duradoura.
4. Jean-Luc Marion. Étant donné: Essai d'une phénoménologie de la donation. Paris: PUF, 1997.
A fenomenologia do dom como horizonte de sentido: todo dom verdadeiro excede a lógica da troca e insere o sujeito numa economia da gratuidade que transforma. O violão dado por amor é símbolo claro desse excesso.
5. Josiah Royce. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.
A lealdade como princípio ético e social que articula indivíduo e comunidade. O gesto de ensinar e retribuir está inserido em uma cadeia de fidelidades mútuas — não como dever legal, mas como vocação interior.
6. Olavo de Carvalho. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Ao tratar da decadência da cultura ocidental e da necessidade de restauração de valores superiores, a obra sugere a retomada do Logos e da ordem espiritual como base para qualquer civilização, inclusive na esfera econômica.
7. São Tomás de Aquino. Suma Teológica, I-II, q. 110 (Sobre a Graça).
Discute-se o dom da graça como algo que eleva e aperfeiçoa a natureza. Ao ensinar, o Sim participa dessa graça elevadora, que torna o outro mais plenamente livre e apto para o bem.
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