Resumo
Este artigo analisa o jogo digital Let Them Trade como uma continuidade simbólica e criativa dos jogos de tabuleiro tradicionais, investigando como a transposição do espaço físico para o digital reconfigura o exercício da imaginação, da estratégia e da vocação. O jogo é interpretado à luz da tradição filosófica ocidental, especialmente a partir das ideias de Johan Huizinga, Josiah Royce e da simbologia civilizacional do Milagre de Ourique. Conclui-se que o tabuleiro digital, longe de ser apenas passatempo, representa um ambiente de formação da inteligência moral e estratégica, que conecta o adulto à sua infância e o orienta à plenitude do tempo qualitativo (kairos).
1. Introdução
A definição clássica de jogos de tabuleiro, ou tabletop games, indica que eles são “games that are normally played on a table or other flat surface”, como jogos de cartas, dados ou miniaturas, exigindo imaginação ativa por parte dos jogadores¹. Com o avanço da tecnologia, esses jogos migraram para o meio digital, criando um fenômeno novo: o “tabuleiro vivo”. Let Them Trade, um jogo de comércio estratégico em tempo real, é exemplo disso.
Essa transformação não é meramente técnica, mas existencial. O que antes era simulação imaginativa, agora é experiência interativa. O adulto, ao jogar, encontra não apenas entretenimento, mas uma espécie de retorno ao mundo da infância — porém com maturidade estratégica, responsabilidade moral e capacidade criadora.
2. O tabuleiro como arquétipo e espaço sagrado
Os jogos de tabuleiro não são uma invenção moderna. Como aponta Huizinga em Homo Ludens, o jogo é anterior à cultura e “é uma função significante, portadora de sentido”². No Egito Antigo, o senet era visto como símbolo da jornada da alma no pós-vida. No Oriente, o go representava o equilíbrio entre força e vazio. O xadrez persa, posteriormente europeu, encenava o conflito entre reinos, nobres, bispos e peões — uma metáfora social e cósmica.
Esses jogos não eram apenas lazer. Eles expressavam uma ordem simbólica, uma cosmologia reduzida. O tabuleiro era o teatro do mundo; jogar era uma forma de meditar sobre a existência e exercer o domínio humano sobre o caos.
Quando Let Them Trade transporta esse teatro simbólico para o ambiente digital, o que se vê é a reanimação de um arquétipo antigo. Agora, o tabuleiro responde, calcula, anima, amplia-se. O mundo deixa de ser representado para ser vivido — e o jogador torna-se demiurgo de uma microcivilização viva.
3. A imaginação encarnada: entre o lúdico e o racional
No plano físico, a imaginação é limitada pelas experiências vividas ou herdadas da história. No plano digital, ela é projetada para além de seus limites naturais. Em Let Them Trade, o jogador organiza rotas comerciais, prevê crises, administra recursos e toma decisões políticas e econômicas. A imaginação aqui se encarna em forma de gestão, cálculo, diplomacia.
A criança sonha com aventuras. O adulto constrói o mundo. Mas o jogo permite unir ambos em um mesmo gesto: jogar é, então, imaginar com maturidade. O tabuleiro digital torna-se não apenas uma memória da infância, mas uma escola de virtudes.
4. A Filosofia da Lealdade: da moralidade do ato de jogar
Josiah Royce, filósofo americano citado por Olavo de Carvalho no documentário O Jardim das Aflições, propõe a lealdade como fundamento da moralidade: “a lealdade é a devoção prática a uma causa”³. Nesse sentido, um jogo como Let Them Trade não propõe apenas vencer, mas ser fiel a um princípio: a prosperidade de uma civilização, a justiça no comércio, o equilíbrio político.
Jogar torna-se um ato ético. O jogador deve ponderar consequências, praticar a prudência e buscar a ordem. O jogo exige mais do que habilidade: exige virtude. O tabuleiro digital converte-se em ambiente de formação moral, em que se aprende a administrar não apenas recursos, mas valores.
5. Ourique e a vocação civilizacional
O Milagre de Ourique, que deu origem à realeza portuguesa de Dom Afonso Henriques, simboliza a aliança entre a fé cristã e a missão civilizacional. A expansão das fronteiras portuguesas era, ao mesmo tempo, política e espiritual⁴.
Analogamente, o tabuleiro digital, quando impregnado de um espírito vocacional, torna-se um espaço simbólico de serviço e criação. Expandir rotas em Let Them Trade não é apenas aumentar lucros, mas refletir sobre a ordem possível de um mundo bem governado.
É o princípio paulino da edificação: “tudo me é lícito, mas nem tudo convém” (1Cor 6,12). O jogador é livre, mas seu uso da liberdade reflete a maturidade da consciência.
6. O digital como Kairos
O filósofo Byung-Chul Han, em O Enxame, aponta que o tempo digital tende à dispersão, ao chronos fragmentado⁵. No entanto, jogos como Let Them Trade resistem a essa tendência, propondo um tempo cheio de sentido — o kairos.
O jogador entra em um ritmo próprio, contemplativo, onde cada ação tem peso e consequência. Ele administra o tempo, calcula ciclos de produção, negocia diplomacia. O jogo exige atenção, continuidade, responsabilidade. O digital deixa de ser distração e se torna exercício de presença.
Conclusão
Let Them Trade representa uma nova etapa na história dos jogos. Ao combinar os princípios antigos do tabuleiro com as possibilidades infinitas do digital, ele resgata a criança e revela o adulto. O jogo, aqui, não é fuga, mas retorno — retorno ao princípio criador do homem, chamado a colaborar com a ordem do mundo.
No tabuleiro digital, o jogador reencontra sua vocação: imaginar, criar, ordenar, servir. Ele não está apenas jogando. Está ensaiando a própria missão.
Notas de Rodapé
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Ver definição apresentada na imagem do artigo: “Tabletop games or tabletops are games that are normally played on a table or other flat surface...”
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HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 3-4.
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ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.
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MATTOSO, José. D. Afonso Henriques. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006. Ver também: DUARTE, Jorge. O Milagre de Ourique: Teologia e Política na Fundação de Portugal. Coimbra: Almedina, 2012.
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HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
Referências
HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2004.
MATTOSO, José. D. Afonso Henriques. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.
DUARTE, Jorge. O Milagre de Ourique: Teologia e Política na Fundação de Portugal. Coimbra: Almedina, 2012.
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