Introdução
A obra Il Principe (O Príncipe), escrita por Nicolau Maquiavel em 1513, tornou-se um marco da teoria política moderna, justamente por romper com a tradição cristã que até então inspirava a ordem civil no Ocidente. Ao dissociar a moral da política, Maquiavel propôs um modelo de governança que legitimava o uso da astúcia, da mentira e da força como meios para manter o poder. Tais ideias provocaram escândalo no seio da cristandade, sendo posteriormente condenadas pela Igreja Católica. Em 1559, a obra foi oficialmente incluída no Index Librorum Prohibitorum, o Índice de Livros Proibidos pela Santa Sé¹.
Este artigo tem por objetivo analisar por que O Príncipe foi condenado pela Igreja, demonstrando que seus princípios são frontalmente opostos à doutrina política católica, especialmente no que se refere à moralidade do poder, à finalidade da autoridade e ao papel do governante.
Maquiavel: a autonomia da política
Maquiavel inaugurou uma nova maneira de pensar o poder político: não mais subordinado à moral cristã, mas sim a uma lógica própria, centrada na eficácia, na utilidade e na manutenção do domínio. Sua célebre recomendação de que “o príncipe deve aprender a não ser bom”² revela a ruptura com o ideal cristão de governante justo e virtuoso. Para ele, a aparência de virtude importa mais do que a virtude em si, pois o sucesso político depende mais da percepção do povo do que da retidão moral do príncipe.
Esse realismo cru, que separa os meios dos fins, legitima práticas como o engano, a traição e o assassinato político — práticas que, embora historicamente conhecidas, eram até então tratadas como desvios da norma moral, não como fundamentos legítimos da ciência política.
A doutrina católica do poder
Ao contrário de Maquiavel, a tradição cristã, particularmente formulada por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, ensina que toda autoridade legítima provém de Deus e deve servir ao bem comum³. O governante, nesta visão, é um ministro da ordem divina, e a lei humana só é justa quando conforme à lei natural e à lei eterna.
São Tomás afirma claramente: “A lei é ordenação da razão para o bem comum, promulgada por aquele que tem a responsabilidade pela comunidade”⁴. Não se trata, portanto, de simples manutenção do poder, mas de ordenar a sociedade para a justiça, a paz e, em última instância, a vida virtuosa e cristã.
O bem comum e a moralidade dos meios
A doutrina católica ensina que os fins não justificam os meios. Mesmo quando a intenção é boa, se os meios são moralmente maus, a ação é condenável⁵. Isso se opõe diretamente à lógica maquiavélica, que tolera o uso de meios imorais desde que eficazes para assegurar o poder ou estabilizar o Estado.
Além disso, a finalidade última do poder político não é a glória do príncipe ou a estabilidade do Estado em si, mas o bem comum material e espiritual dos governados⁶. Isso inclui a promoção da justiça, da paz, da moralidade pública e da verdadeira religião — fundamentos negados ou ignorados pela política secularista iniciada com Maquiavel.
O Príncipe no Index Librorum Prohibitorum
A inclusão de O Príncipe no Index Librorum Prohibitorum se deu pela primeira vez em 1559, sob o Papa Paulo IV. O Index, que vigorou até 1966, tinha por finalidade proteger os fiéis contra doutrinas que pudessem perverter a fé ou os costumes. Maquiavel foi considerado pernicioso tanto pela ética que propunha quanto pela influência prática que sua obra poderia ter sobre príncipes e governantes.
A condenação de Maquiavel, no entanto, não foi meramente repressiva, mas indicativa de um conflito entre duas visões de mundo: uma fundada na Revelação e na ordem natural, e outra fundada na razão autônoma e no pragmatismo do poder.
Mesmo com o fim do Index, a Igreja nunca revogou essa condenação em termos doutrinais. A crítica ao laicismo político e à “autonomia do temporal” continua presente nos documentos do Magistério, especialmente nas encíclicas sociais dos séculos XIX e XX⁷.
Conclusão
A oposição entre Maquiavel e a doutrina católica é profunda e irredutível. O Príncipe representa o nascimento da política moderna como campo autônomo, desligado da moral e da religião, enquanto a Igreja continua a sustentar que não há ordem legítima sem a ordenação ao bem comum e, portanto, sem a moralidade.
A leitura crítica de Maquiavel pode ser útil para compreender os erros do pensamento moderno e os desvios da política contemporânea, mas nunca poderá ser feita como se sua doutrina fosse compatível com os ensinamentos de Cristo e da Igreja. Por isso, O Príncipe segue sendo um sinal de alerta: quando o poder se emancipa da verdade e da justiça, converte-se em tirania.
Notas
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Index Librorum Prohibitorum, 1559. Primeira edição organizada pelo Papa Paulo IV.
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MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Martin Claret, 2005. Cap. XV.
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Cf. Rm 13,1-7; 1Pd 2,13-17.
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SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q. 90, a. 4.
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CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, §§1750-1756.
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LEÃO XIII. Diuturnum Illud. 1881.
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Cf. LEÃO XIII, Immortale Dei; PIO XI, Quadragesimo Anno; JOÃO PAULO II, Centesimus Annus.
Bibliografia
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MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Martin Claret, 2005.
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SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Trad. Frei Leonardo de M. Vale. São Paulo: Loyola, 2001.
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LEÃO XIII. Diuturnum Illud e Immortale Dei. In: Documentos Pontifícios.
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CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000.
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D'ENTRÈVES, A. P. A tradição do direito natural. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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DEL NOCE, Augusto. O problema do ateísmo. São Paulo: É Realizações, 2017.
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