Vivemos em tempos em que as relações humanas são, cada vez mais, mediadas por algoritmos. Plataformas como o Facebook nos apresentam listas de “pessoas que talvez conheçamos”, e basta um clique para que a conexão se estabeleça — ou, ao menos, uma aparência de conexão. Mas será que uma amizade assim iniciada possui alguma profundidade? Ou seria apenas mais uma relação forjada na curiosidade, sem nenhum critério moral?
Este artigo busca refletir sobre essa pergunta fundamental à luz de um princípio maior: a amizade verdadeira só pode existir quando se ama e se rejeita as mesmas coisas, tendo por fundamento o próprio Cristo, na conformidade com o Todo que vem de Deus. Esta não é uma exigência puramente religiosa, mas uma exigência racional, moral e antropológica — pois, como dizia Aristóteles, o homem é um ser que tende naturalmente à comunhão no bem¹.
1. A superficialidade da curiosidade
Quando alguém adiciona uma pessoa simplesmente por ter visto seu rosto em uma sugestão automatizada, essa pessoa se deixa mover por uma curiosidade ociosa. Essa curiosidade é um apetite desordenado pelo novo, pelo diferente, pelo que provoca momentaneamente a atenção. São Tomás de Aquino já advertia contra essa disposição: a studiositas — a estudiosidade — é a virtude contrária à curiositas desordenada, pois busca o saber ordenado à verdade e ao bem².
Neste contexto, a curiosidade que leva à adição de alguém nas redes sociais nada mais é do que um reflexo de uma cultura que perdeu o senso do valor das relações humanas. O resultado é que as conexões se tornam voláteis, e as pessoas são reduzidas a perfis, imagens ou postagens agradáveis. Mas nenhuma amizade se constrói na superfície.
2. O critério moral da amizade: amar e rejeitar o mesmo, em Cristo
A verdadeira amizade é sempre fundada em algo superior. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, distingue três tipos de amizade: a fundada na utilidade, a fundada no prazer e a fundada na virtude. Só esta última pode ser duradoura, pois é baseada na comunhão de vida entre aqueles que amando o bem, buscam o bem um do outro³.
No entanto, a filosofia clássica pode ser aperfeiçoada pela teologia cristã: o critério último da amizade não é apenas o amor ao bem em abstrato, mas o amor à Verdade encarnada: Cristo, o verdadeiro Deus e verdadeiro Homem⁴. Por isso, é na conformidade com o Todo que vem de Deus — isto é, com a ordem do universo redimido por Cristo — que as amizades devem ser firmadas.
Quem não compartilha este critério tenderá a se aproximar do outro por impulsos passageiros, simpatias momentâneas, modismos ideológicos ou afinidades superficiais. Mas uma verdadeira amizade exige mais: exige estudo da alma do outro, discernimento das virtudes, paciência na convivência e firmeza no juízo moral.
3. Entre a psicologia, os recursos humanos e a economia da pessoa
Esse princípio tem um ponto de contato direto com áreas como a psicologia, a teoria da personalidade e os recursos humanos. Não se trata de confundir amizade com gestão de talentos, mas de reconhecer que qualquer relação entre pessoas exige um mínimo de leitura moral da personalidade, seja na amizade, no casamento ou na escolha de um colaborador.
A boa gestão de pessoas não começa com uma ficha de competências técnicas, mas com a compreensão profunda da vocação, das disposições morais, do caráter e dos amores de cada um⁵. Isso exige um olhar psicológico afinado, mas também um critério superior de bem. Não há verdadeira teoria da personalidade sem uma teleologia — isto é, sem saber para que o homem foi feito.
Assim, a psicologia só se completa na teologia moral, e a gestão de pessoas só é eficaz quando está orientada por uma antropologia que reconhece a centralidade da vocação humana à verdade e ao amor⁶.
4. A economia da amizade
Também aqui cabe falar de uma verdadeira “economia da amizade” — não em termos financeiros, mas no sentido profundo de oikonomia: a administração ordenada da casa e da vida. Amizades não se acumulam como contatos em redes sociais. Elas são construídas, cultivadas, discernidas. São como alianças: requerem tempo, estudo e virtude.
O homem verdadeiramente moral não adiciona uma pessoa por impulso. Ele primeiro observa, estuda, pondera. E, se julgar que essa pessoa possui virtudes compatíveis com seu próprio caminho de vida, então se aproxima — com reverência, como quem entra num templo. Pois cada alma é um templo do Espírito Santo, e tratá-la com superficialidade é cometer um sacrilégio relacional⁷.
Conclusão
Vivemos num tempo de relações líquidas, digitais, descartáveis. Mas o homem, mesmo perdido nesse mar de sugestões de amizade, ainda carrega em si o anseio por uma comunhão verdadeira. Cabe a nós, então, recusar os vínculos fáceis e retomar o critério moral da amizade: o amor pela verdade, o estudo das almas e a comunhão com Cristo. Só assim as nossas amizades — e nossas equipes, famílias e comunidades — serão sólidas, fecundas e orientadas ao bem.
Notas de Rodapé
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Aristóteles afirma que o homem é um animal político (zoon politikon), naturalmente inclinado à vida em comum, e que a amizade é a forma mais perfeita de vida conjunta entre os virtuosos.
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Cf. AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. II-II, q. 167. A studiositas é tratada como uma parte da virtude da temperança, sendo o apetite ordenado ao saber, em contraste com a curiositas, que é desordenada.
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ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro VIII.
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Cf. VON HILDEBRAND, Dietrich. A essência do amor. Hildebrand apresenta Cristo como critério último de toda comunhão verdadeira, e fundamenta a amizade na comunhão de valores eternos.
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Cf. ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. Royce trata da importância da lealdade a causas maiores como critério de formação da personalidade e da convivência.
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Cf. BENTO XVI. Caritas in Veritate. A encíclica trata da economia e do desenvolvimento humano a partir da centralidade da verdade e do amor como princípios orientadores.
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Cf. I Cor 3,16-17: “Não sabeis que sois templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?”
Referências
AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. Tradução da versão latina. São Paulo: Loyola, 2001. (v. II-II, q. 167).
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores).
BENTO XVI. Caritas in Veritate: sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade. São Paulo: Paulus, 2009.
HILDEBRAND, Dietrich von. A essência do amor. Lisboa: Principia, 2016.
ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.
Comentários sobre a bibliografia
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Tomás de Aquino, ao abordar o vício da curiosidade e a virtude da estudiosidade, fornece uma chave para compreender a diferença entre aproximação superficial e verdadeira busca pela sabedoria relacional.
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Aristóteles continua sendo a base clássica para o entendimento das categorias de amizade e da vida moral partilhada.
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Dietrich von Hildebrand eleva a amizade à dimensão espiritual, mostrando que o amor só é real quando se funda na comunhão com o valor eterno.
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Josiah Royce conecta o amor, a lealdade e a personalidade moral, apontando que a amizade verdadeira depende da fidelidade a um bem maior que a si mesmo.
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Bento XVI, com clareza e profundidade, articula a verdade e a caridade como os dois pilares de toda vida social bem ordenada, seja ela afetiva ou econômica.
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