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quinta-feira, 10 de julho de 2025

E se o automóvel nunca tivesse vencido? Uma releitura contrafactual da urbanidade moderna

Resumo

Este artigo propõe uma releitura crítica da história urbana do século XX a partir de uma hipótese contrafactual: e se o automóvel não tivesse se tornado o centro do planejamento urbano moderno? Considerando o impacto da motorização em massa nas formas de vida urbana, o trabalho argumenta que o automóvel foi um erro sistêmico que moldou negativamente as cidades. Em contraposição, analisa a ascensão dos serviços de mobilidade por demanda no século XXI, como o Uber, e o surgimento de uma geração que não valoriza mais a posse de veículos. Através desse contraste entre passado e presente, vislumbra-se um futuro urbano alternativo, mais eficiente, humano e racional.

Palavras-chave: urbanismo; automóvel; história contrafactual; mobilidade; Uber; cidades.

1. Introdução

A história humana é, muitas vezes, definida por decisões críticas que moldam o futuro de civilizações inteiras. Nem sempre essas decisões são acertadas. A ascensão do automóvel como eixo estruturador da vida urbana, especialmente no século XX, pode ser lida, retrospectivamente, como um erro coletivo de proporções civilizatórias. Este artigo explora essa hipótese e sugere um exercício de imaginação histórica: o que teria acontecido com nossas cidades se tal erro não tivesse sido cometido?

2. O erro original: a centralidade da vida urbana no automóvel

O automóvel foi alçado, entre as décadas de 1920 e 1970, à condição de símbolo de liberdade, progresso e mobilidade individual. Cidades como Los Angeles, Detroit e São Paulo foram remodeladas para atender a essa nova lógica da circulação motorizada. As consequências dessa decisão foram profundas:

  • Suburbanização massiva e dependência de grandes distâncias;

  • Degradação do transporte coletivo e abandono dos sistemas ferroviários urbanos;

  • Aumento da poluição atmosférica, ruído urbano e aquecimento global;

  • Fragmentação social e marginalização de populações periféricas sem acesso ao automóvel1.

A prioridade dada ao carro individual moldou o próprio imaginário urbano, reduzindo o espaço para a convivência, a cultura de bairro e o transporte público.

3. A releitura contrafactual: e se o carro não tivesse vencido?

Uma hipótese contrafactual nos permite fazer julgamentos morais e estratégicos sobre o passado a partir de pontos de bifurcação históricos2. Ao imaginar um mundo no qual o automóvel não tivesse conquistado tal centralidade, podemos pensar em cidades muito diferentes:

  • Centros urbanos mais compactos, caminháveis e sustentáveis;

  • Fortalecimento de trens urbanos, bondes e redes integradas de transporte público;

  • Preservação de espaços de convivência e de lazer;

  • Menor consumo de energia e menor emissão de gases do efeito estufa;

  • Custo de vida urbano reduzido e maior tempo disponível para a vida em comunidade.

Modelos urbanos como os de Amsterdã, Zurique ou Kyoto mostram que era possível seguir um caminho distinto3.

4. A reversão do desejo: A geração pós-carro

No século XXI, um fenômeno curioso vem ocorrendo: uma nova geração de cidadãos urbanos, conectados digitalmente e mais atentos à questão ambiental, tem abandonado o fetiche do carro próprio. A posse dá lugar ao acesso — e plataformas como Uber, 99 e BlaBlaCar tornam o automóvel um serviço e não uma propriedade.

O carro passa a ser visto como um fardo econômico (IPVA, seguro, manutenção) e um problema urbano (engarrafamentos, falta de estacionamento, insegurança)4.

No Brasil, a precariedade dos transportes públicos ainda faz com que o carro permaneça relevante, especialmente em deslocamentos de emergência ou em regiões periféricas. Contudo, mesmo aí, a chegada do Uber reduziu significativamente a demanda por veículos próprios, especialmente entre jovens solteiros e profissionais liberais5.

5. Conclusão: imaginação, julgamento e planejamento

A imaginação histórica, quando bem utilizada, nos permite formular diagnósticos mais precisos sobre o presente. O automóvel, ao tomar o lugar de protagonista na história urbana, afastou as cidades de seu destino natural: ser o lugar da convivência, da polis, da comunidade viva. O surgimento de alternativas tecnológicas e comportamentais sugere que há espaço para corrigir esse erro histórico — ao menos em parte.

A experiência contemporânea dos jovens urbanos, que já não veem o carro como ideal de liberdade, indica que o futuro alternativo esboçado neste artigo não é apenas uma utopia do passado, mas uma possibilidade concreta de reorganização das cidades.

Como afirmou Jane Jacobs: “As cidades têm a capacidade de prover algo para todos, apenas porque, e somente quando, são criadas por todos”6.

 Referências Bibliográficas

  1. GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo: Perspectiva, 2013.

  2. FERGUSON, Niall. Virtual History: Alternatives and Counterfactuals. New York: Basic Books, 1999.

  3. MONDERMAN, Hans. “Shared Space and the Reclamation of the Street.” In: GEHL, Jan; NEWMAN, Peter. Sustainable Urbanism. Washington, DC: Island Press, 2009.

  4. KLEIN, Naomi. Isso muda tudo: capitalismo vs. o clima. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

  5. PEREIRA, Rafael H. M. “O Uber e a mobilidade urbana no Brasil: diagnóstico e desafios.” In: Revista Transporte e Desenvolvimento, v. 41, n. 2, 2018.

  6. JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

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