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sábado, 19 de julho de 2025

A teologia política do Antigo Testamento: linhagem, bênção e maldição como fundamento da política relacional

 "Eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam, mas trato com misericórdia até mil gerações os que me amam e guardam os meus mandamentos."
— Êxodo 20, 5–6

Resumo

Este artigo investiga os fundamentos teológicos da política relacional a partir da Escritura, especialmente do Antigo Testamento. Defende-se que o agir político e jurídico do povo de Israel era baseado numa noção relacional de justiça, onde a pessoa não é compreendida isoladamente, mas como parte de uma linhagem e de uma aliança. As categorias de bênção e maldição, herança e contaminação moral, exprimem uma compreensão do pecado e da virtude como eventos comunitários e transgeracionais.

Palavras-chave: política bíblica, linhagem, justiça relacional, bênção, maldição, aliança, pecado coletivo.

1. Introdução: A justiça como ordem de vínculos

A Escritura não concebe o homem como um sujeito jurídico autônomo, mas como membro de uma linhagem, parte de um povo, herdeiro de uma promessa. A relação do indivíduo com Deus e com a lei está profundamente entrelaçada com sua posição familiar, tribal e nacional. A justiça, portanto, não é apenas distributiva no plano individual, mas relacional no plano genealógico e social.

Essa lógica rompe com a abstração do direito moderno e reafirma o princípio de que a história humana é feita por casas, não por indivíduos desconectados. O pecado de um homem pode manchar sua linhagem (cf. Nm 14,18); a justiça de um pode salvar uma nação (cf. Gn 18,32).

2. O princípio da solidariedade transgeracional

A noção de solidariedade moral entre as gerações aparece com força em diversas passagens bíblicas. Na aliança do Sinai, por exemplo, Deus declara:

“Visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam” (Ex 20,5).

Essa “visitação” não é punição arbitrária, mas consequência ontológica do vínculo familiar. O pecado de um patriarca desequilibra a ordem espiritual da casa; seus efeitos são colhidos pelos descendentes, mesmo que não repitam o ato.

O mesmo princípio vale para a bênção:

“Trato com misericórdia até mil gerações os que me amam e guardam os meus mandamentos” (Ex 20,6).

Essa relação transgeracional é a base espiritual do que hoje chamamos de política relacional: os atos do indivíduo não são isolados, mas reverberam em sua linhagem e sua terra.

3. Exemplos bíblicos da política relacional

a) O pecado de Acã (Js 7)

Ao tomar despojos proibidos após a queda de Jericó, Acã traz maldição sobre todo o povo. Israel perde a batalha de Ai. Josué consulta o Senhor e descobre que “Israel pecou” (Js 7,11), embora o ato tenha sido individual. O castigo recai sobre Acã, seus bens e sua família, numa ação de purificação coletiva.

Esse episódio revela que o mal, ainda que praticado secretamente, contamina a comunidade, exigindo expiação pública e restauradora.

b) A intercessão de Abraão por Sodoma (Gn 18)

Abraão negocia com Deus a salvação de Sodoma com base em justos remanescentes. Ele pergunta:

“Destruirás o justo com o ímpio? [...] Se houver dez justos, destruirás a cidade?” (Gn 18,23–32).

A resposta implícita de Deus é que os vínculos dos justos podem proteger os ímpios. Essa lógica revela o poder comunitário da virtude — uma única casa justa pode sustentar a ordem espiritual de uma cidade.

c) A maldição de Geazi (2Rs 5)

Após mentir ao profeta Eliseu, Geazi é amaldiçoado:

“A lepra de Naamã se apegará a ti e à tua descendência para sempre” (2Rs 5,27).

A lepra, símbolo do pecado e da impureza, é aqui transmitida por linhagem, mostrando a continuidade dos efeitos morais para além do ato isolado.

4. A política da aliança: casas, tribos e nações

O Antigo Testamento é dominado por estruturas de aliança genealógica:

  • A aliança com Noé abrange toda a sua descendência (Gn 9,9).

  • A aliança com Abraão estabelece bênção para todas as famílias da terra por meio de sua linhagem (Gn 12,3).

  • A aliança com Davi promete um trono eterno a sua casa (2Sm 7,16).

A política israelita é, portanto, fundada sobre casas, linhagens e promessas hereditárias. A justiça de um rei afeta todo o povo (cf. 1Rs 11,11). A infidelidade de uma tribo exige reparação coletiva (cf. Jz 20). O sacerdócio é transmitido por descendência (cf. Ex 29).

Essa lógica é profundamente relacional, teológica e histórica — o exato oposto da política liberal moderna.

5. Cristo e a restauração da linhagem

No Novo Testamento, Cristo assume a linhagem humana (cf. Mt 1) e reordena a política relacional segundo a justiça plena. Ele é chamado “novo Adão”, pois de sua obediência nasce uma nova humanidade (cf. Rm 5,19).

O pecado de Adão contaminou toda a sua descendência; a justiça de Cristo purifica a linhagem dos que nele são enxertados (cf. Jo 15,5).
Paulo diz:

“Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura; as coisas antigas passaram” (2Cor 5,17).

Na Nova Aliança, a política relacional não é abolida, mas santificada. A Igreja é o novo Israel — um corpo coletivo e hierárquico, onde o pecado de um atinge a todos (cf. 1Cor 5), mas também onde a oração de um pode salvar muitos (cf. Tg 5,15–16).

6. Conclusão: A ordem política como extensão da casa

A teologia política do Antigo Testamento oferece fundamentos profundos para uma concepção relacional da justiça. O homem é visto como ser enraizado — com pais, filhos, irmãos, terra e linhagem. Sua ação tem peso espiritual, e esse peso é medido na rede dos vínculos.

A justiça, nesse sentido, não é mera aplicação de normas neutras, mas restauração da ordem relacional, do equilíbrio entre bênção e maldição. A política relacional contemporânea, se quiser ser legítima, deve retomar essa visão teológica: sem ela, degenerará em punição arbitrária ou manipulação geopolítica.

Restaurar o princípio bíblico da justiça é reconhecer que a política é extensão da casa — e que não há ordem social sem ordem moral entre pais e filhos.

Notas

  1. BÍBLIA. Livro do Êxodo, 20, 5–6.

  2. Idem, Livro de Josué, cap. 7.

  3. Idem, Gênesis 18, 23–32.

  4. Idem, 2 Reis 5, 27.

  5. Idem, 2 Coríntios 5, 17.

Bibliografia

  • BÍBLIA SAGRADA. Tradução da CNBB. São Paulo: Edições CNBB, 2008.

  • BONHOEFFER, Dietrich. Ética. São Leopoldo: Sinodal, 2005.

  • KAUFMAN, Gordon D. The Theology of Promise. Philadelphia: Fortress Press, 1963.

  • WRIGHT, Christopher J.H. Old Testament Ethics for the People of God. Downers Grove: IVP Academic, 2004.

  • RATZINGER, Joseph. Chamados à comunhão: Eclesiologia da Igreja primitiva. São Paulo: Loyola, 2004.

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