Resumo
Este artigo propõe uma leitura simbólica e estratégica do universo de The Sims 4, em particular da cidade de San Myshuno, à luz de conceitos contemporâneos como a "conectografia" e a "riqueza das redes", mas também de noções tradicionais como a "geografia sentimental" de Plínio Salgado e o ideal de serviço a Cristo em terras distantes estabelecido na simbologia de Ourique. A análise sugere que os jogos de simulação, quando atravessados por experiências existenciais e intelectuais do jogador, podem converter-se em formas sofisticadas de arte eletrônica textual, inspirando novas formas de criação cultural e pedagógica.
1. Introdução
O universo de The Sims 4, especialmente quando enriquecido com expansões como Do Ócio ao Negócio (Hobbies & Business) e Escapada da Neve, permite ao jogador uma experiência de simulação da vida que vai muito além do entretenimento. Neste contexto, San Myshuno surge como um ambiente multifacetado de trocas, feiras e convivência multicultural que remete, paradoxalmente, tanto à conectividade globalizada quanto à construção local de vínculos afetivos e espirituais
2. O mercado como encontro entre redes e sentimentos
San Myshuno é a metrópole por excelência dentro do mundo de The Sims 4, abrigando festivais, feiras, mercados de pulgas e eventos culturais. Ali, a instalação de barraquinhas de venda de comidas de outras culturas (inclusive as da expansão Escapada da Neve) permite ao jogador vivenciar o que Yochai Benkler (2006) chamou de “riqueza das redes”¹ — um modelo econômico baseado na colaboração, no compartilhamento de conhecimento e na multiplicação de vínculos produtivos entre indivíduos.
Essa lógica das conexões, também chamada por Parag Khanna de “conectografia”², é aqui reencontrada numa dimensão afetiva que ecoa a Geografia Sentimental de Plínio Salgado³, onde o território não se define apenas por linhas no mapa, mas pelos vínculos espirituais e de pertencimento que os indivíduos constroem com os lugares.
3. Nacionidade Cristã e O Ideal de Ourique
A construção de pequenos negócios por meio dos vínculos com os habitantes da Avelândia do Norte — região inserida por outra expansão do jogo — revela uma nova forma de "nacionidade", fundada não por uma ideia abstrata de pátria, mas pelo serviço concreto a Cristo nas relações humanas cotidianas. Tal vocação está em sintonia com o ideal cristão que emerge da simbologia de Ourique, onde o chamado à missão transcende fronteiras e toma o mundo como campo de serviço espiritual⁴.
Neste contexto, o restaurante que o jogador adquire pode ser sede de um pequeno negócio familiar, onde a divisão de tarefas é pensada a partir das vocações pessoais de cada personagem. Ao evitar a terceirização do trabalho e engajar os próprios membros da casa — por exemplo, o protagonista na cozinha e Summer como anfitriã — a simulação realiza, ainda que de modo virtual, uma ética do trabalho e do cuidado que se opõe à lógica fria e impessoal da gestão capitalista moderna.
4. Arte Eletrônica Textual: simulação como criação cultural
Ao combinar suas experiências em The Sims 4 com um repertório intelectual sólido e coerente, o jogador transforma o jogo em um meio de criação cultural autêntica. O que se produz não é um gráfico nem uma imagem, mas um texto simbólico, cuja base é a vida simulada, mas cujos efeitos reverberam na consciência e no imaginário real.
Esta forma de expressão pode ser considerada uma nova vertente da arte eletrônica textual, onde a simulação não é fim, mas meio para a elaboração de pensamentos, sistemas simbólicos e propostas de mundo. Assim, a experiência no jogo pode inspirar a criação de outros simuladores de vida — não mais apenas jogos, mas verdadeiros laboratórios de civilização, política, religiosidade e economia.
5. Conclusão
A cidade fictícia de San Myshuno, quando reconfigurada à luz de conceitos filosóficos, econômicos e espirituais, revela-se mais que um cenário de jogo: torna-se metáfora de um mundo onde redes, afeto, missão e negócios coexistem. Por meio da simulação, o jogador não apenas sonha com uma nova forma de vida, mas a ensaia, constrói e comunica — abrindo caminhos para uma pedagogia do espírito através do entretenimento digital.
Referências
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BENKLER, Yochai. The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom. New Haven: Yale University Press, 2006.
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KHANNA, Parag. Connectography: Mapping the Future of Global Civilization. New York: Random House, 2016.
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SALGADO, Plínio. Geografia Sentimental. São Paulo: Editora das Américas, 1956.
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OLIVEIRA, José Pedro. Ourique: Milagre e Fundamento. Lisboa: Paulus, 2003.
Notas de Rodapé
¹ Benkler entende que as redes descentralizadas de produção e colaboração, como ocorre nas economias digitais, substituem o modelo tradicional industrial. San Myshuno espelha isso por permitir que o próprio jogador produza, venda e aprenda receitas sem uma estrutura hierárquica externa.
² Parag Khanna introduz o conceito de “conectografia” para enfatizar como as conexões (vias, cabos, redes, fluxos) redefinem o poder no mundo moderno, superando as fronteiras estatais.
³ A geografia sentimental salgadiana vê o território nacional como expressão dos afetos, da cultura e da religião do povo. Em The Sims, esta dimensão é simulada por meio das interações familiares, festivais e feiras locais.
⁴ Segundo a tradição de Ourique, Dom Afonso Henriques consagrou o novo reino a Cristo após vitória milagrosa. Este ato funda não apenas uma monarquia, mas uma missão: servir a Cristo nas nações — missão que o jogador simula ao construir laços e negócios em terras “estrangeiras” como San Myshuno.
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