Resumo
Este artigo oferece uma leitura teológico-filosófica do consumo de jogos digitais como prática de formação espiritual e disciplina temporal. Critica-se a lógica da antecipação do desejo fomentada pela indústria dos games — que vende o amanhã para um público que deseja o agora — e analisa-se sua relação com os pecados da concupiscência e da curiosidade, conforme a tradição cristã. Como alternativa, propõe-se uma economia contemplativa do luxo, fundamentada nos conceitos de studiositas e kairós, segundo autores como Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, São Boaventura e São Josemaría Escrivá. Ao disciplinar o desejo e reordenar o tempo segundo a verdade, o jogador transforma o consumo em liturgia e o lazer em ascese.
1. Introdução
A indústria dos games, em seu estágio atual de hiperconsumo, construiu uma estratégia central: seduzir o consumidor com a promessa do amanhã — trailers, roadmaps, acessos antecipados, pré-vendas. Essa antecipação manipula os afetos mais profundos do jogador, alimentando o desejo desordenado de prazer imediato e a busca vazia por novidades. Longe de ser uma simples tática de mercado, tal prática encarna duas paixões desordenadas: a concupiscência e a curiosidade.
Neste artigo, propõe-se compreender essa dinâmica à luz da ética clássica e da espiritualidade cristã. A partir dessa crítica, delineia-se uma alternativa: o consumo diferido e contemplativo dos jogos digitais como expressão de uma economia ordenada pelos bens espirituais.
2. A pedagogia da concupiscência e da curiosidade
Santo Agostinho identificava na concupiscência dos olhos o impulso de ver tudo por ver, não para aprender, mas por vaidade sensível¹. São Tomás de Aquino, por sua vez, concebe a curiosidade como o desejo desordenado de saber, caracterizado por sua inutilidade para a salvação². A indústria dos games, ao explorar essa tendência, promove um culto ao efêmero. O consumo se converte em culto à novidade vazia. Já a concupiscência manifesta-se como desejo ansioso de fruição: adquirir o jogo antes mesmo de ele estar pronto, jogá-lo no lançamento mesmo sem hardware adequado, sem disciplina nem propósito³.
3. Crematística e a inversão da economia
Aristóteles distingue duas formas de lidar com os bens: a oikonomiké (economia doméstica, voltada ao bem viver) e a krematistiké (crematística, voltada ao acúmulo ilimitado de riqueza). A primeira está ordenada pela finalidade natural; a segunda, é “contrária à natureza”, pois transforma o dinheiro em fim absoluto⁴. No consumo digital, essa perversão aparece com nitidez: edições limitadas, microtransações, paywalls e conteúdos “exclusivos” criam uma escassez artificial, cultivando uma pedagogia da carência e da ansiedade permanente⁵.
4. Contra a crematística: a economia do luxo contemplativo
A resposta não está na fuga do mundo, mas na sua reintegração à ordem do espírito. É possível consumir jogos de maneira virtuosa, quando tal consumo é orientado por inteligência, temperança e finalidade elevada.
Comprar um jogo e guardá-lo para o momento certo, após anos de poupança, estudo e aprimoramento do equipamento, transforma o consumo em ascese. Tal atitude configura-se como investimento espiritual, e não gasto fútil. Como um vinho que amadurece no tempo certo, o jogo ganha valor na espera paciente⁶:
“Quando eu compro um jogo e espero de 5 a 15 anos para ter um computador que o rode bem, eu estou comprando um vinho no formato de jogo.”⁷
Esse é o verdadeiro luxo contemplativo — não de ostentação, mas de nobreza interior, onde o tempo é valorizado como dom. Aristóteles já afirmava que há bens que não apenas satisfazem as necessidades, mas que elevam a alma racional por meio do lazer contemplativo⁸.
5. O jogo como liturgia do tempo: entre Chronos e Kairós
Na espiritualidade cristã, há distinção entre Chronos (tempo cronológico) e Kairós (tempo da graça). Submeter o tempo comum ao tempo da eternidade é o caminho da santificação — inclusive nos jogos.
São Boaventura chama de studiositas a virtude que ordena o desejo de saber à contemplação da verdade⁹. Essa virtude se opõe diretamente à curiositas desordenada. Quando o jogo, antes objeto de impulso, torna-se ocasião de formação espiritual e de descanso regenerador, realiza-se o princípio do apostolado da diversão, como ensinava São Josemaría Escrivá:
“Santifica o tempo de descanso, dando-lhe um fim nobre: que sirva também para descansar os outros, para sorrir, para esquecer as preocupações e para servir.”¹⁰
O consumo torna-se culto, o lazer torna-se liturgia, e o tempo livre, um campo fértil para a graça.
6. Conclusão: a sabedoria que espera
Pagar um jogo hoje em 12 parcelas para só usufruí-lo plenamente em anos não é loucura — é sabedoria. A alma que sabe esperar venceu os bens do presente e preferiu os do futuro. Tal prática é expressão da economia dos amores ordenados, onde o consumo é submetido à verdade, o prazer ao bem, e o tempo à eternidade.
Assim, a indústria dos jogos, embora marcada pela lógica do mercado e do efêmero, pode ser transfigurada pela graça. Basta que o jogador opte por um caminho mais alto: o do luxo espiritual, da disciplina do desejo e da santificação do tempo.
Notas de rodapé
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AGOSTINHO, Santo. Confissões, X, 35: “Curiosidade vã é o desejo de ver coisas vãs ou saber coisas fúteis, não para viver melhor, mas por impulso dos olhos e dos ouvidos.”
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TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 167, a. 1: “Quando se busca conhecer o que não é útil à salvação, ou se busca conhecer por vaidade...”
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Cf. TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q. 30, a. 1: define a concupiscência como apetite desordenado do prazer sensível.
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ARISTÓTELES. Política, I, 9–10. A krematistiké visa o acúmulo ilimitado e é distinta da economia doméstica (oikonomiké), voltada à vida virtuosa.
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Como no caso de jogos freemium, que vendem moedas virtuais ou cosméticos para criar uma escassez simulada.
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Esse tipo de relação com o jogo exige paciência, autocontrole e visão de longo prazo — virtudes associadas ao tempo da eternidade.
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DETTMANN, José Octavio. Notas de Diário, 2025.
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ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, X, 7–8: “A felicidade consiste principalmente na contemplação.”
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BOAVENTURA. Breviloquium, Prologus, n. 5: “Studiositas est virtus appetitiva qua mens humana ordinatur ad studium veritatis.”
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ESCRIVÁ, Josemaría. Sulco, n. 529.
Referências
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. 6. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores).
ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da UnB, 1985.
BOAVENTURA. Breviloquium. In: Opera Omnia, Tomus V. Quaracchi: Collegium S. Bonaventurae, 1882.
ESCRIVÁ, Josemaría. Sulco. São Paulo: Quadrante, 2014.
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica. Tradução da Comissão de Estudos Tomistas. São Paulo: Loyola, 2001.
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