1. Introdução
O conceito moderno de nacionalidade tem sido objeto de profundas disputas conceituais, sobretudo no campo das ciências humanas, onde se confrontam visões racionalistas, historicistas e simbólicas da constituição dos Estados-nação. Dentro dessa controvérsia, destaca-se a tensão entre os modelos propostos por Ernst Gellner e John Borneman: o primeiro, com sua definição funcionalista de nacionalidade como um equivalente moderno da religião, fundado na uniformidade institucional do Estado; o segundo, com sua proposta de um entendimento mais afetivo e simbólico, no qual o nacional se realiza no senso de lar compartilhado¹.
Neste artigo, proponho um desdobramento espiritual dessa tensão: uma cristianização do conceito de nacionidade, à luz da tradição luso-cristã que remonta à Batalha de Ourique, e à experiência de Gustavo Corção como apóstolo da alteridade. Tomar um país como um lar não é suficiente: trata-se agora de servir a Cristo em terras distantes, reconhecendo no outro uma revelação que não nos nega, mas nos aprofunda.
2. Nacionalidade como Religião: a crítica de Gellner
Ernst Gellner, em sua obra clássica Nations and Nationalism, defende que o nacionalismo é um produto da modernidade industrial: à medida que a sociedade se torna funcionalmente diferenciada, o Estado moderno se vê compelido a homogeneizar a cultura, a linguagem e a educação dos seus cidadãos². Nessa lógica, a nação passa a ocupar o lugar simbólico que antes era próprio da religião:
*“O nacionalismo não é a criação de nações, mas a imposição de uma cultura padrão, que se torna sagrada enquanto dura a constituição que a sustenta.”*³
Em outras palavras, a nação moderna exige fidelidade total ao Estado, do mesmo modo que a religião exigia fidelidade total a Deus. Tudo deve estar “no Estado, nada fora dele, nada contra ele” — parafraseando a fórmula do totalitarismo político.
3. Borneman e a nação como lar
Em contraposição, o antropólogo John Borneman propõe uma leitura mais íntima da nacionalidade. Em seus estudos sobre o pós-guerra alemão, ele observa que o nacionalismo não é apenas uma imposição burocrática, mas também uma forma de enraizamento afetivo e moral, algo que envolve a sensação de pertencer a um lugar, ser acolhido por ele e cuidar dele.
Para Borneman, a nacionidade é mais bem entendida como um senso de lar:
*“Ser nacional não é um ato de crença absoluta, mas um senso de habitar um lugar com os outros, partilhar sua memória e sua esperança.”*⁴
Assim, o nacional deixa de ser o sacerdote de um Estado-igreja, e passa a ser o cuidador de um lar comum, enraizado numa história concreta, feita de convivência e cuidado.
4. A Cristianização da Nacionidade: De Ourique à Alteridade Redentora
Foi a partir dessa distinção — entre nacionalidade como religião do Estado e nacionidade como experiência de lar — que elaborei a minha proposta de cristianização do conceito de nacionidade.
Inspirado pela tradição portuguesa que remonta ao Milagre de Ourique (1139) — em que Dom Afonso Henriques teria visto Cristo antes da batalha, sendo por Ele ungido como rei para servi-Lo nas terras que tomaria dos mouros⁵ — compreendo a verdadeira nacionidade como um ato de missão: servir a Cristo em terras distantes, tomando cada lugar como um lar em Cristo, por Cristo e para Cristo.
Esse senso é radicalmente distinto do nacionalismo moderno: não se funda na exclusão, mas na entrega; não se realiza pela força, mas pela hospitalidade.
E esse senso de missão se enriquece com a leitura de Gustavo Corção, que via o “outro” não como ameaça à identidade, mas como um caminho para a própria conversão. Corção escreve:
*“O outro nos revela quando acolhido com humildade; ele nos devolve a nós mesmos sob a luz de Cristo.”*⁶
Assim, a nação torna-se o espaço simbólico da hospitalidade cristã, onde servir ao próximo e tomar o país como lar são expressões de uma mesma fidelidade redentora.
5. A nacionidade como forma: superação da fronteira
Esse modelo de nacionidade cristianizada também ajuda a superar as fronteiras simbólicas que dividem os povos — tais como as que discutimos ao pensar a “cidade litorânea de interior”, ou a geometria fractal como metáfora da fronteira entre Portugal e Espanha.
Se a fronteira é o lugar do conflito de medidas (como vimos em Gellner), a nacionidade cristã é o lugar da superação pela forma conciliadora (como sugerimos a partir de Mandelbrot). A fidelidade não está na rigidez da linha, mas na forma superior que a acolhe — e essa forma é Cristo.
É nessa lógica que afirmo:
A nacionidade se realiza plenamente quando se toma uma terra como lar em Cristo, servindo a Ele através da descoberta do outro.
Isso é mais do que patriotismo. É mais do que convívio. É missão espiritual.
6. Conclusão
O contraste entre Gellner e Borneman permite abrir o espaço para uma nova definição de nacionidade — não como submissão religiosa ao Estado, nem apenas como lar afetivo, mas como expressão do chamado espiritual de servir a Cristo nas nações. Isso exige um espírito de missão, de fidelidade, de escuta e de forma: tudo aquilo que encontramos em Ourique, em Corção e na melhor tradição luso-brasileira.
Tal concepção permite ao homem superar fronteiras não com armas ou tratados, mas com formas espirituais que reconciliam as medidas em nome da Verdade. A geometria da nacionidade não é euclidiana: é fractal. E sua unidade não é política: é caridade.
Notas de Rodapé
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Cf. BORNEMAN, John. Subversions of International Order: Studies in the Political Anthropology of Culture. Albany: State University of New York Press, 1998.
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Cf. GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Ithaca: Cornell University Press, 1983.
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Ibid., p. 48.
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BORNEMAN, John. Belonging in the Two Berlins: Kin, State, Nation. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 10.
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Cf. MATTOSO, José. Identificação de um País: Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096–1325). Lisboa: Gradiva, 1995.
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Cf. CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro. São Paulo: Agir, 1968, p. 42.
Bibliografia
BORNEMAN, John. Belonging in the Two Berlins: Kin, State, Nation. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.
BORNEMAN, John. Subversions of International Order: Studies in the Political Anthropology of Culture. Albany: State University of New York Press, 1998.
CARVALHO, Olavo de. O jardim das aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995.
CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro. São Paulo: Agir, 1968.
GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Ithaca: Cornell University Press, 1983.
MATTOSO, José. Identificação de um País: Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096–1325). Lisboa: Gradiva, 1995.
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