E se o automóvel nunca tivesse dominado o século XX? Como seria o mundo se os trilhos tivessem permanecido como espinha dorsal da civilização moderna?
Imagine por um instante que Sid Meier’s Railroad Tycoon, ao invés de retratar o apogeu das ferrovias no século XIX, fosse ambientado no século XX — mas num mundo onde o automóvel jamais se popularizou. Nesse universo alternativo, os trilhos não teriam perdido espaço para o asfalto; ao contrário, teriam se tornado os vetores definitivos da urbanização, do turismo e do comércio. E com isso, as estações ferroviárias seriam muito mais do que meros pontos de embarque e desembarque: seriam centros de gravidade urbana.
1. Estações como núcleos urbanos
Sem a onipresença do carro, não haveria subúrbios espalhados nem rodovias extensas. O valor de uma propriedade dependeria diretamente da sua proximidade com uma estação. Nessas estações se concentraria toda a infraestrutura de vida moderna: moradia, trabalho, consumo, cultura. A arquitetura urbana giraria em torno delas.
Nas cidades grandes, as estações centrais seriam equipadas com:
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Hotéis integrados, como aqueles da arquitetura de ferro do final do século XIX, mas modernizados;
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Restaurantes e cafés com cozinhas internacionais, refletindo o fluxo de turistas;
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E sobretudo, shopping centers, que surgiriam não como destinos de passeio de fim de semana, mas como centros logísticos de consumo diário, acessíveis apenas por trem, bonde ou bicicleta.
Nesse contexto, quem controla as estações, controla a economia.
2. Turismo Ferroviário: uma experiência orquestrada
Num mundo dominado pelos trilhos, o turismo seria ainda mais racionalizado:
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O visitante chegaria por avião a um hub intercontinental (Lisboa, por exemplo);
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Circulando pela Europa por via férrea, visitaria destinos turísticos conectados por trens de alta velocidade;
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Retornaria ao ponto inicial — e de lá voltaria ao seu país.
Essa ideia de circuito fechado dá protagonismo à estação ferroviária como elo entre o turismo e a vida urbana. O passageiro não vai apenas de um ponto a outro — ele vive a experiência do caminho. E as estações se tornam embaixadas culturais.
3. O exemplo real: Japão e o modelo da cidade integrada ao trem
Enquanto o Ocidente escolheu o automóvel como símbolo de liberdade e progresso, o Japão pós-guerra fez a escolha oposta. Com espaço limitado, densidade populacional alta e severas restrições geográficas, os japoneses apostaram na ferrovia como centro da vida urbana. O resultado foi o surgimento de um modelo urbano admirável — e totalmente funcional — conhecido como Transit-Oriented Development (TOD).
3.1 Estações como ecossistemas urbanos
As grandes estações japonesas — como Tokyo, Shinjuku, Osaka e Nagoya — não são apenas terminais de passageiros: são hubs verticais e subterrâneos, organizados em camadas de acessos e atividades econômicas (DUANY; PLATER-ZYBERK; SPECK, 2010).
Elas incluem:
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Centros comerciais;
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Supermercados, bancos e serviços públicos;
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Hotéis e restaurantes integrados;
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Escritórios, coworkings e escolas;
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Passarelas, túneis e linhas de trem-bala (shinkansen).
3.2 Empresas ferroviárias como promotoras urbanas
No Japão, as operadoras de trem constroem os bairros onde operam. A JR East, por exemplo, transformou a estação de Tokyo em um centro de luxo, com hotel, shopping, museus e integração aérea (CALMENT, 2018). A Tokyu Corporation reurbanizou áreas como Futako-Tamagawa, desenvolvendo bairros completos a partir da lógica ferroviária.
4. Aplicando o modelo às cidades brasileiras
No Railroad Tycoon do século XX sem carros, o Brasil seria reconfigurado ao redor das linhas férreas. Cidades médias e históricas se tornariam polos turísticos e econômicos. Eis alguns cenários possíveis:
4.1 Ouro Preto – A Jóia Colonial Reconectada
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Estação reformada com hotel colonial integrado;
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Trens turísticos vindos de Belo Horizonte;
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Trens temáticos com serviços de bordo de culinária mineira e música barroca;
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Lucro ampliado com oficinas de restauro e produção de artesanato local.
4.2 Salvador – Porto, Fé e Tradição
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Estação central como hub cultural afro-brasileiro;
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Integração com trens costeiros ligando Itaparica, Ilhéus e Aracaju;
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Shopping temático e museu de cultura afro-lusitana na própria estação.
4.3 Petrópolis – A Estação Imperial
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Reativação da linha Rio-Petrópolis com trem panorâmico;
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Estação integrada ao Palácio de Cristal e ao cassino histórico;
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Hotel de luxo com serviços para diplomatas e turistas de alto padrão.
5. Lisboa como porta de entrada do Atlântico Sul
Lisboa, neste cenário alternativo, é o hub natural do turismo luso-brasileiro.
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Turistas sul-americanos chegam por avião à capital portuguesa;
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Partem de trem para Paris, Roma ou Berlim;
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Retornam a Lisboa para voltar ao Brasil, fechando o ciclo ferroviário.
A estação de Lisboa funciona como um aeroporto cultural ferroviário: hotel integrado, shopping com produtos regionais, pavilhão de eventos e check-in aéreo embutido.
6. Conclusão: o tycoon como arquiteto da civilização
Sid Meier’s Railroad Tycoon sempre foi um jogo de trilhos, mas em um século XX sem automóveis ele se tornaria um simulador de civilização.
O jogador não seria mais apenas um magnata das locomotivas, mas um arquiteto do espaço social, cultural e econômico.
A lógica do Japão mostra que um futuro alternativo não só era possível — ele chegou a acontecer. Apenas não no Ocidente.
Ao aplicar esse modelo ao Brasil, percebemos como as ferrovias poderiam ter moldado cidades mais humanas, integradas e produtivas.
Jogando Railroad Tycoon nesse cenário, não buscamos apenas lucro: buscamos ordem, beleza e bem comum.
Notas de rodapé
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O conceito de Transit-Oriented Development (TOD) descreve a organização urbana ao redor de estações de transporte coletivo, com densidade habitacional alta e diversidade de usos, promovendo caminhabilidade e menor dependência de veículos motorizados.
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Em Railroad Tycoon, o jogador assume o papel de um barão ferroviário, construindo trilhos, conectando cidades e transportando cargas. Nesta proposta, ampliamos seu papel para um desenvolvedor urbano e gestor turístico, à semelhança do papel real das operadoras japonesas de trem.
Referências Bibliográficas
CALMENT, Marie-Ange. Japan Railway & Urban Development. Tōkyō: JRT Publishing, 2018.
DUANY, Andrés; PLATER-ZYBERK, Elizabeth; SPECK, Jeff. The Smart Growth Manual. New York: McGraw-Hill, 2010.
GEORGE, Rose. Ninety Percent of Everything: Inside Shipping, the Invisible Industry That Puts Clothes on Your Back, Gas in Your Car, and Food on Your Plate. New York: Metropolitan Books, 2013.
JAPAN RAILWAYS GROUP. Annual Report 2023: Infrastructure, Tourism and Urban Development. Tokyo: JR East Corporation, 2023.
MEIER, Sid. Sid Meier's Railroad Tycoon. [S.l.]: MicroProse, 1990.
MORITA, Noriko. Transit-Oriented Development in Japan: Learning from the Railways. Kyoto: UrbanRail Publishing, 2021.
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