1. Introdução
Quando um brasileiro diz que Chicago é uma cidade do interior, ele não está tentando rebaixar sua importância geopolítica ou econômica. Ele está apenas utilizando, de forma espontânea, a lógica idiomática e administrativa da língua portuguesa, tal como é empregada no Brasil. No entanto, essa afirmação pode causar um autêntico choque para um norte-americano, ou mesmo para um falante de inglês acostumado à lógica territorial dos Estados Unidos.
É nesse ponto que emerge o conflito linguístico e cultural que propomos analisar: o da cidade litorânea de interior, um conceito paradoxal para brasileiros, mas perfeitamente viável nos termos geográficos dos EUA.
Este artigo busca explicar esse impasse a partir do fenômeno do Brasenglish — a forma de inglês moldada pela estrutura cognitiva e idiomática do português brasileiro — e como ele obriga o falante bilíngue a conciliar categorias que, em seus idiomas de origem, são mutuamente excludentes. Por fim, veremos como esse esforço é, na verdade, uma expressão concreta daquilo que estudamos na teoria da nacionidade: a superação da fronteira pela linguagem criadora.
2. O "Interior" no Brasil: Uma Categoria Administrativo-Cultural
No Brasil, a noção de "interior" é marcada por uma divisão histórica e funcional. Grosso modo, toda cidade que não é capital de estado e que não está localizada no litoral atlântico é interiorana. Essa classificação não leva necessariamente em conta o tamanho da cidade, seu grau de industrialização, urbanização ou importância estratégica.
Segundo Celso Cunha, essa tendência idiomática reflete o modo como o português brasileiro absorve e transforma categorias geográficas em expressões culturais de pertencimento local¹. Por isso, metrópoles como Campinas, São José dos Campos, Ribeirão Preto, ou Uberlândia, ainda que tenham milhões de habitantes, universidades, polos industriais e aeroportos internacionais, continuam sendo tratadas cultural e oficialmente como "cidades do interior". E isso não causa desconforto algum — é assim que o idioma funciona.
3. Os Quatro Mares dos EUA: Lógica Portuária e Acesso Estratégico
Nos Estados Unidos, entretanto, a categoria geográfica que corresponde ao "litoral" não se resume às costas atlântica e pacífica. Existe uma noção estratégica conhecida como os “quatro mares” (four seas):
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O Oceano Atlântico
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O Oceano Pacífico
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O Golfo do México
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Os Grandes Lagos (com acesso ao Oceano Atlântico via Rio São Lourenço)
Essa concepção se popularizou principalmente no contexto da doutrina naval americana no século XX, conforme análise de Alfred Mahan², e continua sendo fundamental para a infraestrutura logística dos EUA. Cidades portuárias em qualquer uma dessas frentes são consideradas, em termos funcionais, litorâneas.
É o caso de Chicago, cuja posição geográfica à beira do Lago Michigan e sua ligação com o sistema hidroviário Saint Lawrence Seaway permitem o tráfego direto de embarcações oceânicas. O porto de Chicago é, de fato, um porto internacional³.
Dizer que Chicago é do “interior”, para um americano, seria equivalente a dizer que Hamburgo não é litorânea porque fica às margens de um rio. Causa estranhamento, porque quebra a lógica cultural local.
4. O Impasse Semântico: O que é “Litoral” e o que é “Interior”?
Neste ponto surge a dificuldade do falante de Brasenglish, o português nativo que se aventura a descrever os Estados Unidos usando categorias da sua língua materna:
“Chicago não é capital e não está na costa marítima, portanto é uma cidade do interior.”
Este juízo, válido dentro do mapa mental brasileiro, conflita com o modo como o inglês organiza o território americano. Um norte-americano pensa:
“Chicago é uma cidade costeira no sentido funcional: ela tem porto, exporta e importa mercadorias via oceano, e está interligada à economia marítima global.”
Ambos estão certos dentro de seus paradigmas, mas nenhum termo existente resolve a tensão entre essas visões. É aí que surge a proposta conceitual deste artigo.
5. A Solução Conceitual: “Cidade Litorânea de Interior”
Para reconciliar essas visões, propomos o conceito de cidade litorânea de interior. Trata-se de uma cidade que:
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Não está na costa marítima (litoral atlântico ou pacífico)
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Não é capital de estado
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Está localizada no interior do continente
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Possui acesso direto ao mar via sistema hidroviário navegável
Chicago cumpre todos esses critérios. Portanto, em vez de tentar forçar sua classificação em um sistema ou outro, o termo litorânea de interior serve como uma ponte conceitual entre as duas tradições culturais e linguísticas.
Esse tipo de cidade não existe no Brasil, pois nossa geografia não favorece sistemas fluviais navegáveis que liguem o interior ao oceano com tamanha eficácia. Nossa rede hidrográfica continental (como o São Francisco, o Tocantins ou o Paraná) não possui infraestrutura equivalente para o comércio marítimo em larga escala⁴. Portanto, o conceito é inédito na experiência brasileira, e justamente por isso causa confusão quando importado para o contexto norte-americano sem tradução conceitual adequada.
6. A Fronteira Superada: A Nacionidade e a Linguagem como Solução Criativa
Esse impasse, no entanto, não deve ser visto como um obstáculo — mas como um campo de invenção. E é justamente aqui que a teoria da nacionidade mostra sua força.
Ao buscar uma solução linguística para esse paradoxo, o falante bilíngue não está apenas adaptando vocabulário: ele está superando a fronteira entre dois imaginários nacionais. O conceito de "litorânea de interior", por mais inusitado que pareça, é uma expressão dessa superação. Ele cria um terceiro espaço conceitual, que não é nem puramente brasileiro, nem puramente americano — mas uma nova síntese.
Na teoria da nacionidade, esse tipo de criação é entendido como um ato de fidelidade à experiência real, e não à ortodoxia idiomática. Olavo de Carvalho destaca que a consciência nacional genuína é fruto de um "acordo profundo entre linguagem e realidade"⁵. É o momento em que o idioma, em vez de separar os povos, se torna um instrumento de reconciliação, entendimento e fidelidade ao mundo concreto.
Assim, o Brasenglish, longe de ser uma falha, revela-se um espaço criativo de transfiguração — onde o falante, ao nomear o que ainda não tem nome, age como um verdadeiro agente de cultura e de nação. Ele supera a fronteira não ao negá-la, mas ao nomeá-la de novo, com autoridade e imaginação.
7. Conclusão
Ao chamar Chicago de cidade do interior, o brasileiro não comete um erro — ele apenas revela a forma como a língua portuguesa organiza o espaço. Ao estranhar essa classificação, o americano também não erra — ele apenas defende a funcionalidade estratégica do seu sistema hidroviário. Entre essas duas visões, surge uma possibilidade nova: a de pensar cidades que pertencem ao interior geográfico e ao litoral funcional ao mesmo tempo.
O conceito de cidade litorânea de interior não apenas reconcilia essas perspectivas, como também enriquece o vocabulário dos que transitam entre idiomas. É uma contribuição do Brasenglish à cartografia conceitual do mundo moderno — e uma amostra de que, quando dois mundos se encontram, não é preciso escolher entre um ou outro. Às vezes, o que se precisa é nomear o terceiro.
Chicago não está no litoral — mas navega até o oceano. Não é capital — mas comanda o comércio. É do interior — mas tem mar. No Brasenglish, é tudo isso ao mesmo tempo. E é por isso que precisamos de novos nomes para novas realidades. É assim que se faz nação.
Notas de rodapé
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CUNHA, Celso. A língua portuguesa e a realidade brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
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MAHAN, Alfred Thayer. The Influence of Sea Power upon History: 1660–1783. Boston: Little, Brown and Company, 1890.
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U.S. Army Corps of Engineers. Great Lakes Navigation System: Economic Strength to the Nation. 2018.
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ANDRADE, Manuel Correia de. A questão regional no Brasil. São Paulo: Atlas, 1995.
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CARVALHO, Olavo de. O jardim das aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995. p. 134.
Bibliografia
ANDRADE, Manuel Correia de. A questão regional no Brasil. São Paulo: Atlas, 1995.
CARVALHO, Olavo de. O jardim das aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995.
CUNHA, Celso. A língua portuguesa e a realidade brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
MAHAN, Alfred Thayer. The Influence of Sea Power upon History: 1660–1783. Boston: Little, Brown and Company, 1890.
U.S. ARMY CORPS OF ENGINEERS. Great Lakes Navigation System: Economic Strength to the Nation. Washington, D.C.: USACE, 2018.
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