"Se o cara nasce mané, cresce mané, morre mané, mané": a trilha sonora involuntária de um ministro do Supremo
Em algum momento dos anos 2000, voltando da psicóloga no banco do carona do carro do meu pai, eu ouço no rádio uma música que não me saiu da memória desde então: "Se o cara nasce mané, cresce mané, morre mané, mané...". O ritmo é seco, a letra repetitiva e cáustica, e a banda — O Rappa — acerta em cheio ao traduzir o sentimento de milhões de brasileiros: o de viver numa terra onde, para muitos, não há mobilidade, não há justiça e não há respeito. O sujeito nasce mané e, salvo milagre ou contravenção, morre mané.
Os anos foram se passando - eu me formei em Direito, tornei-me escitor profissional e observei de camarote o país desfigurar-se nas mãos de uma false elite judicial que, longe de servir à justiça, serve a si mesma. E então, no teatro do absurdo que se tornou o debate público brasileiro, o ministro Luiz Roberto Barroso, atual presidente do STF, solta sua frase imortal: "Perdeu, mané" — uma zombaria fria, dirigida a um manifestante que ousou interpelá-lo.
A frase viralizou. Mas a zombaria não é o pior. O pior é o que ela revela: uma falsa elite que não esconde mais o desprezo pelo povo. E é nesse ponto que a lembrança daquela música volta com força: "Se o cara nasce mané...". O ministro a conclui: "...perdeu, mané". Eis o Brasil.
O desprezo como método
A função do Supremo Tribunal Federal, em tese, é guardar a Constituição. Mas nos últimos anos, ele passou a guardar os interesses de quem governa — desde que esses interesses estejam revestidos de alguma estética iluminista de "progresso" e "democracia", mesmo que esta última tenha sido reduzida à formalidade eleitoral.
Barroso, mestre da retórica elegante e do sorriso tecnocrático, é apenas o mais performático dos onze. Com sua retórica de TED Talk e sua pose de estadista global, ele vem liderando uma transformação do STF em tribunal político, que interfere abertamente em eleições, legisla por omissão do Congresso e intimida vozes dissidentes com inquéritos de duvidosa constitucionalidade.
E quando um cidadão ousa perguntar algo, o ministro responde como quem fala com o subalterno da senzala: "Perdeu, mané".
Uma música que profetizou o Brasil de toga
A canção do Rappa, embora nascida no início do milênio, parece descrever a lógica que o STF tem imposto à sociedade: você já nasceu derrotado. Você é o mané — não importa se estuda, trabalha, protesta ou vota. O que você pensa não conta. A narrativa já foi decidida.
"Não levanta a cabeça, mané
Te ensinaram assim
É só não discutir
Aceita o fim."
A canção, que à época soava como denúncia, hoje soa como diagnóstico.
O Brasil virou um tribunal
Ao contrário do que o bom senso jurídico manda, o STF não mais julga apenas casos concretos. Ele julga intenções. Ele censura prévias. Ele investiga e pune fora do devido processo. Ele legisla costumes. E, agora, também desdenha publicamente dos cidadãos, como se fossem idiotas úteis da história.
O cidadão não é mais réu nem autor: é espectador. E para o ministro, mané.
A revanche dos manés
Mas há um detalhe que Barroso talvez ignore. O povo brasileiro — mesmo na caricatura que ele despreza — sabe guardar ofensas. E há uma diferença entre o homem simples e o mané: o homem simples sabe que está sendo enganado, mesmo que não tenha os códigos da elite para provar isso.
Ao transformar a figura do “mané” em inimigo de toga, Barroso pode estar despertando, sem querer, uma consciência política genuína e madura — justamente aquilo que ele diz defender, mas que sabota todos os dias, ao tratar a política como um clube fechado de iluminados.
Conclusão
A frase "perdeu, mané" entra para o folclore da infâmia. E a música do Rappa, lançada há mais de vinte anos, torna-se trilha sonora involuntária dessa fase obscura da história nacional.
Barroso pode achar que ganhou. Mas, no fim das contas, o verdadeiro mané é quem despreza o povo e acredita que sua toga o imuniza da História. A História não esquece. E ela, às vezes, canta.
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