Resumo
Este artigo propõe uma reflexão sobre o desenvolvimento de jogos digitais que, ao contrário da produção industrial dos estúdios AAA, surgem da visão persistente de um único artista. Partindo do exemplo de Saelig, jogo criado por uma só pessoa, argumenta-se que tais projetos se aproximam mais de obras de igreja — em complexidade, tempo de maturação e vocação simbólica — do que de produtos de mercado. Aponta-se ainda como esse modelo artesanal proporciona uma experiência contemplativa, dotada de valor simbólico e espiritual muitas vezes ausente nas grandes produções.
1. Introdução
Na história das artes, nem toda obra nasce da pressão do mercado ou da demanda do público. Catedrais medievais, cantatas de Bach, pinturas de Fra Angelico — todas essas criações são fruto de uma dedicação prolongada, muitas vezes transgeracional, que só se justifica por uma ideia de transcendência. No campo dos jogos digitais, uma analogia semelhante pode ser feita. Jogos como Saelig não são produtos de entretenimento de massa, mas sim estruturas simbólicas, feitas com a paciência de um mestre de ofício.
2. A lógica das obras de igreja
Construir uma catedral, como a de Chartres ou a de Colônia, exigiu não apenas engenho técnico e artístico, mas também um espírito de vocação. O tempo médio de construção ultrapassava gerações.¹ Não se tratava de cumprir prazos ou buscar lucro imediato, mas de erigir algo belo e durável — digno do sagrado. Analogamente, jogos como Dwarf Fortress, RimWorld e Saelig amadurecem ao longo de muitos anos, guiados por uma ideia de completude e coerência interna, mais do que por qualquer deadline editorial.
3. O artista solitário contra a indústria AAA
Enquanto os grandes estúdios — como Ubisoft, EA ou Rockstar — investem milhões para desenvolver títulos que devem agradar investidores e audiências globais, desenvolvedores independentes operam no sentido oposto. O criador de Saelig, Robert Winkler, desenvolveu sozinho um sistema dinâmico de relações sociais, economia, política feudal e herança patrimonial — um feito raríssimo mesmo entre grandes equipes.²
Essa oposição entre artista e corporação se repete em outros títulos: Stardew Valley (Eric Barone), Banished (Luke Hodorowicz), Kenshi (Chris Hunt) e Factorio (Wube Software, inicialmente um projeto de dois programadores tchecos). O que une esses projetos é a intenção estética, mais do que a escala de produção.
4. Economia relacional e realismo sistêmico
Jogos que simulam o tecido relacional da vida são mais do que simples RPGs de mundo aberto. Eles funcionam como microssociedades, em que o jogador participa não apenas como executor de missões, mas como habitante, comerciante, líder comunitário ou camponês.³
Em Saelig, por exemplo, o jogador pode nascer, casar, herdar terras, administrar negócios, tornar-se nobre ou viver como mendigo. O mundo não gira ao redor do jogador, como nos jogos tradicionais; ele é apenas parte de um sistema. Isso é radicalmente diferente da lógica dos jogos mainstream, que colocam o jogador no centro de tudo, com missões sempre à sua espera.
5. A estética da paciência e da contemplação
Jogos como Saelig são jogados com tempo, com atenção. Não há pressa, nem urgência artificial. Não há competição multiplayer tóxica, nem loot boxes, nem algoritmos de retenção. Há uma experiência de vida — com suas repetições, ritmos lentos, surpresas e fracassos.
Trata-se, portanto, de um jogo contemplativo. Tal como os monges que meditavam em seus claustros, o jogador encontra no ritmo do jogo um espelho de sua própria interioridade. Trata-se de uma “arte que suspende a vontade”, como dizia Schopenhauer,⁴ e não de uma experiência desenhada para a gratificação imediata.
6. O valor simbólico de um jogo
Um dado relevante: Saelig foi adquirido por R$ 27,00 no momento de seu lançamento. Esse valor, irrisório em termos monetários, não corresponde ao valor simbólico que o jogo adquiriu para o jogador. Ele não é apenas um passatempo, mas uma companhia, um espaço simbólico, um microcosmo de vida medieval cristã e econômica.
Esse tipo de retorno — imaterial, contemplativo, interior — é o que justifica o investimento paciente na criação de mundos coerentes. O artista, como o construtor de catedrais, não busca apenas aplauso, mas oferecer um lugar onde outros possam habitar espiritualmente.
Considerações finais
O desenvolvimento artesanal de jogos como Saelig inaugura uma estética do ofício e da permanência. Trata-se de uma resposta silenciosa à lógica industrial da obsolescência e da massificação. Como as catedrais, esses jogos não foram feitos para serem consumidos rapidamente, mas para durar, amadurecer, ser revisitados. São menos produtos e mais moradas. E, como tais, merecem ser reconhecidos como obras de arte.
Notas de Rodapé
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Eco, Umberto. A Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1989. A noção de uma obra em contínua construção, comum na Idade Média, aparece amplamente tratada por Eco.
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Ver entrevista de Robert Winkler sobre o desenvolvimento de Saelig no fórum Steam, onde ele relata o processo solitário de desenvolvimento: https://store.steampowered.com/app/794260/Saelig/
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Galloway, Alexander R. Gaming: Essays on Algorithmic Culture. University of Minnesota Press, 2006. O autor argumenta que jogos não são apenas narrativas, mas sistemas interativos com lógicas próprias.
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Schopenhauer, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação, Livro III, §36. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005.
Referências
ECO, Umberto. A Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 1989.
GALLOWAY, Alexander R. Gaming: Essays on Algorithmic Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
WINKLER, Robert. Entrevista no fórum da Steam sobre Saelig. Disponível em: https://store.steampowered.com/app/794260/Saelig/. Acesso em: 06 jul. 2025.
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