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quarta-feira, 23 de julho de 2025

Do tabuleiro à animação: a metamorfose do exercício imaginativo no mundo digital

Antes da era digital, os jogos de tabuleiro exigiam do jogador um esforço imaginativo singular: o mundo de peças inertes e marcadores estáticos se tornava vivo apenas na mente de quem jogava. Era um exercício sobre uma natureza morta — como uma pintura que requer do observador não apenas atenção, mas envolvimento ativo para ganhar sentido. Como sintetiza este que vos fala:

"Antes do mundo digital, jogar nos jogos de tabuleiro era como fazer exercício imaginativo sobre natureza morta – hoje, com o mundo digital, o que era vivificado pela imaginação é vivificado pela animação e pela programação, fazendo com que o tabuleiro fique vivo."¹

No mundo contemporâneo, esse imaginário passou a ser assistido e amplificado por dispositivos digitais. A animação substitui o gesto mental, e o código substitui as regras tácitas, gerando um ambiente onde o próprio tabuleiro “respira”, reage, responde. Há quem veja nisso uma perda de interioridade, mas também se pode ler como uma expansão sensível: o que era possível apenas no foro interno da fantasia se torna uma experiência coletiva visível.

1. O Homo Ludens digital

Johan Huizinga, em sua obra seminal Homo Ludens, afirma que o jogo antecede a própria cultura — ele é “mais velho do que a cultura”, e é “um fator de formação da civilização”². O homem que joga não o faz por utilidade, mas por uma pulsão de liberdade, marcada por regras, espaço e tempo delimitados. O jogo, portanto, é um ritual de forma.

No ambiente digital, essa forma ganha outra concretude. Os limites do tabuleiro físico são substituídos pelas fronteiras do código. Mas o princípio permanece: o jogador é transportado a um “círculo mágico” — o magic circle de Huizinga — que suspende a realidade ordinária e insere o indivíduo numa experiência simbólica totalizante.

2. Jogo, estrutura e desordem

Roger Caillois, discípulo crítico de Huizinga, propõe uma tipologia dos jogos em Les Jeux et les Hommes (1958)³. Ele distingue quatro categorias fundamentais: agon (competição), alea (sorte), mimicry (simulação) e ilinx (vertigem). Os jogos digitais modernos — especialmente os de tabuleiro animado, como Let Them Trade, The Guild 3 ou Patrician IV — combinam essas categorias com notável sofisticação.

Nos jogos digitais de comércio e estratégia, há agon (competição entre jogadores ou contra IA), alea (eventos aleatórios), mimicry (representação de um mercador medieval, por exemplo) e ilinx (imersão sensorial, especialmente em ambientes 3D). A fusão desses elementos só foi possível graças à mediação técnica — uma função que, segundo McLuhan, altera não apenas o meio, mas a própria mensagem.

3. A alma do tabuleiro: animação e presença

Marshall McLuhan nos lembra de que "o meio é a mensagem"⁴. Ao migrar do suporte físico ao digital, o jogo muda não apenas de aparência, mas de ontologia. O meio digital confere ao jogo uma aparência de vida: o tabuleiro “ganha alma” por meio da animação e da lógica computacional. Isso desloca o centro do jogo do plano da imaginação subjetiva para o plano da presença objetiva — algo que se vê, ouve, sente, interage.

Mas a animação não substitui a imaginação: ela a reorganiza. Os jogos digitais estimulam formas novas de pensamento espacial, estratégico e simbólico. O que era uma “natureza morta” em madeira e papel se tornou um organismo semiótico interativo, onde imagens e sons retroalimentam a fantasia.

4. A imaginação cristã no jogo

A imaginação é uma faculdade que, quando bem ordenada, aproxima o homem do Logos. O jogo, enquanto símbolo e estrutura, pode ser visto como uma imagem — ainda que pálida — da criação: ordenada, harmônica, cheia de propósito. Não é por acaso que os monges medievais jogavam xadrez como exercício espiritual, ou que os jogos de papéis fossem usados em pedagogias cristãs tradicionais para ensinar virtudes⁵.

Ao observar essa transição do jogo de tabuleiro ao jogo digital, devemos, portanto, discernir os riscos — como a dispersão e o entorpecimento —, mas também reconhecer os potenciais: imaginação reeducada, sentidos ordenados, e até mesmo uma nova forma de meditatio lúdica, na qual o homem, criado para louvar, se expressa em meio ao jogo como sinal da sua liberdade ordenada.

Referências Bibliográficas

  1. DETTMANN, José Octavio. Comunicação pessoal via ChatGPT, 23 jul. 2025.

  2. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2000.

  3. CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 1990.

  4. McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 1974.

  5. PIEPER, Josef. Ócio e Contemplação. São Paulo: Quadrante, 1995.

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