Antes da era digital, os jogos de tabuleiro exigiam do jogador um esforço imaginativo singular: o mundo de peças inertes e marcadores estáticos se tornava vivo apenas na mente de quem jogava. Era um exercício sobre uma natureza morta — como uma pintura que requer do observador não apenas atenção, mas envolvimento ativo para ganhar sentido. Como sintetiza este que vos fala:
"Antes do mundo digital, jogar nos jogos de tabuleiro era como fazer exercício imaginativo sobre natureza morta – hoje, com o mundo digital, o que era vivificado pela imaginação é vivificado pela animação e pela programação, fazendo com que o tabuleiro fique vivo."¹
No mundo contemporâneo, esse imaginário passou a ser assistido e amplificado por dispositivos digitais. A animação substitui o gesto mental, e o código substitui as regras tácitas, gerando um ambiente onde o próprio tabuleiro “respira”, reage, responde. Há quem veja nisso uma perda de interioridade, mas também se pode ler como uma expansão sensível: o que era possível apenas no foro interno da fantasia se torna uma experiência coletiva visível.
1. O Homo Ludens digital
Johan Huizinga, em sua obra seminal Homo Ludens, afirma que o jogo antecede a própria cultura — ele é “mais velho do que a cultura”, e é “um fator de formação da civilização”². O homem que joga não o faz por utilidade, mas por uma pulsão de liberdade, marcada por regras, espaço e tempo delimitados. O jogo, portanto, é um ritual de forma.
No ambiente digital, essa forma ganha outra concretude. Os limites do tabuleiro físico são substituídos pelas fronteiras do código. Mas o princípio permanece: o jogador é transportado a um “círculo mágico” — o magic circle de Huizinga — que suspende a realidade ordinária e insere o indivíduo numa experiência simbólica totalizante.
2. Jogo, estrutura e desordem
Roger Caillois, discípulo crítico de Huizinga, propõe uma tipologia dos jogos em Les Jeux et les Hommes (1958)³. Ele distingue quatro categorias fundamentais: agon (competição), alea (sorte), mimicry (simulação) e ilinx (vertigem). Os jogos digitais modernos — especialmente os de tabuleiro animado, como Let Them Trade, The Guild 3 ou Patrician IV — combinam essas categorias com notável sofisticação.
Nos jogos digitais de comércio e estratégia, há agon (competição entre jogadores ou contra IA), alea (eventos aleatórios), mimicry (representação de um mercador medieval, por exemplo) e ilinx (imersão sensorial, especialmente em ambientes 3D). A fusão desses elementos só foi possível graças à mediação técnica — uma função que, segundo McLuhan, altera não apenas o meio, mas a própria mensagem.
3. A alma do tabuleiro: animação e presença
Marshall McLuhan nos lembra de que "o meio é a mensagem"⁴. Ao migrar do suporte físico ao digital, o jogo muda não apenas de aparência, mas de ontologia. O meio digital confere ao jogo uma aparência de vida: o tabuleiro “ganha alma” por meio da animação e da lógica computacional. Isso desloca o centro do jogo do plano da imaginação subjetiva para o plano da presença objetiva — algo que se vê, ouve, sente, interage.
Mas a animação não substitui a imaginação: ela a reorganiza. Os jogos digitais estimulam formas novas de pensamento espacial, estratégico e simbólico. O que era uma “natureza morta” em madeira e papel se tornou um organismo semiótico interativo, onde imagens e sons retroalimentam a fantasia.
4. A imaginação cristã no jogo
A imaginação é uma faculdade que, quando bem ordenada, aproxima o homem do Logos. O jogo, enquanto símbolo e estrutura, pode ser visto como uma imagem — ainda que pálida — da criação: ordenada, harmônica, cheia de propósito. Não é por acaso que os monges medievais jogavam xadrez como exercício espiritual, ou que os jogos de papéis fossem usados em pedagogias cristãs tradicionais para ensinar virtudes⁵.
Ao observar essa transição do jogo de tabuleiro ao jogo digital, devemos, portanto, discernir os riscos — como a dispersão e o entorpecimento —, mas também reconhecer os potenciais: imaginação reeducada, sentidos ordenados, e até mesmo uma nova forma de meditatio lúdica, na qual o homem, criado para louvar, se expressa em meio ao jogo como sinal da sua liberdade ordenada.
Referências Bibliográficas
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DETTMANN, José Octavio. Comunicação pessoal via ChatGPT, 23 jul. 2025.
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HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2000.
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CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 1990.
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McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 1974.
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PIEPER, Josef. Ócio e Contemplação. São Paulo: Quadrante, 1995.
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