“Nenhum homem é uma ilha.”
— John Donne
Resumo
O presente artigo defende que o advento de legislações como a Lei Magnitsky inaugura um novo paradigma político — o da política relacional — em ruptura com a tradição moderna do individualismo político. Argumenta-se que esse novo modelo jurídico e moral reconhece o ser humano como inserido em redes de pertencimento e responsabilidade, onde seus atos têm repercussões morais e sociais para além de sua individualidade. Por fim, propõe-se que esse retorno ao vínculo exige um fundamento teológico sólido para evitar arbitrariedades e distorções ideológicas.
Palavras-chave: individualismo, política relacional, Lei Magnitsky, antropologia política, moral cristã.
1. Introdução
Desde a modernidade, a política ocidental tem operado segundo a lógica do individualismo jurídico. Trata-se de uma concepção do homem como sujeito autônomo, desvinculado de laços comunitários que o comprometam moral ou juridicamente por atos alheios. Esse paradigma alcançou seu auge com o liberalismo contratualista e a codificação do direito moderno, sobretudo nos séculos XVIII e XIX.
Contudo, a emergência de novas ameaças globais — como o crime transnacional, a corrupção sistêmica e o terrorismo — desafia esse modelo. Leis como a Magnitsky Act revelam uma nova lógica de responsabilização: o homem não é mais julgado apenas como indivíduo, mas como parte de uma rede moral e econômica. O artigo propõe que esta lógica inaugura uma nova antropologia jurídica e política, cuja matriz é relacional.
2. A tradição do sujeito isolado
A modernidade política, fundada no racionalismo antropocêntrico, concebe o indivíduo como a menor unidade moral e política. John Locke, por exemplo, afirma que os direitos naturais precedem qualquer forma de associação civil: “os homens são, por natureza, livres, iguais e independentes”¹. O contrato social nasce, portanto, de uma reunião de sujeitos autônomos que escolhem submeter-se ao Estado, sem que esse Estado possa violar a esfera da autonomia privada.
Essa concepção culmina numa teoria da justiça que exclui a culpa por associação e privilegia a responsabilidade individual estrita. É o que se vê, por exemplo, na estrutura penal liberal, onde se evita a punição de herdeiros, cúmplices involuntários ou grupos afetados por ações isoladas. Esse modelo, por mais eficaz que tenha sido na limitação do arbítrio estatal, gera uma profunda erosão dos vínculos morais comunitários.
Como observa Alasdair MacIntyre:
“No mundo moderno, perdemos a linguagem da virtude justamente porque perdemos a concepção do homem como membro de uma história que o precede”².
3. A irrupção da política relacional: o caso da Lei Magnitsky
A Lei Magnitsky, promulgada em 2012 pelo Congresso dos Estados Unidos, autorizou o poder executivo a aplicar sanções econômicas, migratórias e diplomáticas a indivíduos acusados de graves violações de direitos humanos ou corrupção. Posteriormente, a legislação foi expandida e adotada por outros países como Canadá, Reino Unido, Estônia e Lituânia.
Contudo, o que torna essa lei paradigmática é o fato de que suas sanções muitas vezes se estendem aos entornos dos acusados: empresas ligadas, familiares próximos, aliados políticos e até estruturas estatais que os protejam. Está implícita aí uma mudança de lógica: do ato isolado à rede de cumplicidade; do indivíduo ao contexto relacional.
Não se trata mais apenas de “o que você fez?”, mas: “com quem você se aliou?”, “quem foi favorecido?”, “quem perpetuou o dano social?”. Essa lógica é incompatível com o individualismo jurídico, e evoca uma ética da responsabilidade coletiva.
Charles Taylor observa que uma das marcas do homem moderno é sua “perda da encarnação”, isto é, da percepção de estar situado num contexto histórico e relacional³. A política relacional pode ser vista, nesse sentido, como um retorno — ainda que incipiente e contraditório — a essa encarnação moral.
4. Fundamento metafísico: o ser relacional na tradição cristã
Para que essa nova lógica não se torne mero instrumento de poder geopolítico, é necessário enraizá-la numa antropologia sólida. Essa base é fornecida pela tradição cristã, que entende o homem como um ser relacional por natureza.
Santo Tomás de Aquino, ao tratar da lei natural, ensina que o homem é “por natureza um animal político e social” (Summa Theologica, I-II, q. 94, a. 2). Logo, suas ações têm sempre repercussões na ordem da comunidade. O pecado, por sua vez, “contamina a cidade” (q. 90, a. 1), e a virtude “edifica o corpo místico”.
Na tradição veterotestamentária, essa estrutura é ainda mais explícita: o bem de um pai beneficia os filhos até a milésima geração; o pecado de um líder pode atrair maldição sobre o povo (cf. Ex 20,5; Nm 14,18). Não se trata de culpa automática, mas de vínculo real entre atos e consequências herdadas.
Esse é o fundamento último da política relacional: reconhecer que, em cada ato humano, há uma reverberação comunitária, familiar e até espiritual.
5. Riscos da distorção secular
Sem um fundamento transcendente, essa política relacional pode degenerar:
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Em perseguições ideológicas, onde meros vínculos afetivos são suficientes para a condenação.
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Em instrumento geopolítico, onde países impõem suas sanções seletivamente, segundo interesses estratégicos.
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Em inversão do ônus da prova, punindo não atos, mas conexões.
Por isso, uma política relacional autêntica precisa estar ancorada numa lei moral objetiva, como aquela expressa na tradição naturalista cristã. Caso contrário, ela será apenas a máscara moral de novos totalitarismos.
6. Conclusão
A emergência de leis como a Magnitsky revela o colapso da ideia moderna de sujeito isolado. A política relacional que delas emerge reconhece o homem como ser enraizado em vínculos reais, cujas ações ressoam além de sua própria esfera.
Trata-se de uma reconfiguração profunda da justiça: a volta da noção de comunidade moral, linhagem espiritual, corpo ético. Contudo, sem um fundamento transcendente, esse retorno pode ser manipulado e pervertido.
O desafio contemporâneo, portanto, é o de reconstruir uma teoria política e jurídica que una a eficácia das novas práticas com a sabedoria da tradição perene, onde a justiça relacional não se torne tirania, mas sim instrumento da paz e da ordem.
Notas
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LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 17.
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MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007. p. 204.
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TAYLOR, Charles. Sources of the Self: The Making of the Modern Identity. Cambridge: Harvard University Press, 1989. p. 27.
Bibliografia
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AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Trad. Alexandre Corrêa. São Paulo: Loyola, 2001.
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LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007.
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SCRUTON, Roger. How to Be a Conservative. London: Bloomsbury, 2014.
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TAYLOR, Charles. Sources of the Self: The Making of the Modern Identity. Cambridge: Harvard University Press, 1989.
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U.S. Congress. Global Magnitsky Human Rights Accountability Act. Public Law 114-328, Dec. 23, 2016.
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