1. Introdução
O Império Português, diferentemente das potências coloniais modernas, fundou sua expansão em um regime de povoação municipalista, marcado por uma capilaridade política assentada nas câmaras locais e pela aliança entre a Coroa e os súditos em cada território. A relação entre o Rei e seus vassalos não era genérica ou centralizada, mas orgânica, pessoal e fundada na justiça. Nesse contexto, a tributação seguia o princípio do territorialismo, segundo o qual cada terra contribuía conforme sua realidade, através de pactos locais ajustados ao bem comum e à glória de Deus.
Entretanto, essa estrutura descentralizada e personalizada não exclui a possibilidade de um imposto de renda. Pelo contrário: dentro do espírito cristão da monarquia portuguesa, um tributo sobre a renda pessoal poderia ser perfeitamente concebido como uma prestação voluntária e justa ao soberano, caso existisse tal instrumento fiscal no tempo histórico.
2. O Regime de Povoação Municipalista
A expansão portuguesa na América, África, Ásia e Oceania foi marcada pela fundação de núcleos urbanos dotados de câmaras municipais que, desde cedo, gozaram de grande autonomia administrativa e judicial. Como destaca Vitorino Magalhães Godinho, "a administração ultramarina portuguesa baseava-se mais na autoridade local das câmaras do que numa presença efetiva e constante da metrópole"¹.
Essas câmaras representavam o povo local e atuavam em consonância com a autoridade régia, gerando um modelo de pacto federativo orgânico, muito distinto do centralismo ilustrado das potências posteriores. O Rei era visto como pai da pátria, guardião da justiça e promotor da unidade moral do império. A monarquia portuguesa, especialmente após a revolução de Avis e o milagre de Ourique, consolidou-se como um projeto espiritual: um povo eleito, conduzido por um Rei eleito, a serviço de Cristo.
3. Tributação Territorialista: um império de pactos
A estrutura fiscal portuguesa nos territórios ultramarinos era, majoritariamente, territorialista. Os tributos variavam segundo a natureza econômica da terra e eram resultado de concessões régias, contratos, forais e compromissos locais. Como explica Diogo Ramada Curto:
"A arrecadação de impostos no império português estava longe de obedecer a um modelo centralizado; antes, configurava-se como um conjunto de arranjos locais mediados por agentes régios e pelas câmaras municipais"².
Isso significa que a justiça tributária era adaptada à realidade local, favorecendo a prosperidade da terra e permitindo que a liberdade do povo se aperfeiçoasse na ordem cristã. Não havia espaço para a espoliação ou o nivelamento: cada qual contribuía conforme podia, como os membros de um corpo que servem à cabeça.
4. O Imposto de Renda como possibilidade histórica
Embora o imposto de renda não existisse como figura tributária no período colonial português, nada impede, em termos de estrutura política e teológica, que esse tipo de tributo fosse implementado dentro da lógica monárquica e territorialista. Ao contrário dos modelos modernos, em que o imposto de renda é instrumento de engenharia social e redistributiva centralizada, no império português tal tributo seria expressão de gratidão e responsabilidade pessoal perante o soberano, nos méritos de Cristo, e com vistas ao bem comum local.
A relação entre o vassalo e o Rei não era puramente jurídica, mas sacramental e cristológica: o Rei, imagem de Cristo, recebia a oblação voluntária do povo como expressão de ordem, fidelidade e justiça. O imposto de renda, nesse espírito, poderia existir como uma prestação de contas espiritualizada, prestada àquele que exerce o poder para proteger, não para espoliar.
5. O Caso da Câmara de São Paulo de Piratininga
Tomemos como exemplo a câmara republicana de São Paulo de Piratininga. Sendo uma terra de difícil acesso, com economia inicialmente pobre e baseada na agricultura de subsistência e na caça, qualquer pacto tributário deveria ser cuidadosamente ajustado à sua realidade. Mas, com o passar do tempo, à medida que a terra prosperasse e os vassalos servissem a Cristo através do trabalho e da justiça, nada impediria que um imposto sobre a renda – entendido como fruto legítimo da atividade ordenada – fosse pactuado com o Rei.
Esse imposto seria:
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Personalizado;
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Proporcional à capacidade do território;
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Instrumento de gratidão e não de punição;
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Regido por acordos livres e não por decretos unilaterais.
6. Conclusão: tributar nos méritos de Cristo
O Império Português, enraizado na tradição católica, mostrou que é possível governar vastos territórios sem ceder ao centralismo revolucionário ou ao totalitarismo fiscal. O municipalismo cristão e o territorialismo fiscal não impedem a existência de um imposto sobre a renda, desde que este se subordine à ordem moral, à justiça concreta e ao serviço de Cristo.
Um imposto de renda assim concebido não seria um mecanismo de dominação, mas uma forma de aperfeiçoar a liberdade de muitos nos méritos de Cristo, a ponto de a autoridade monárquica servir a Cristo em terras distantes, por meio da força de sua justiça e de seu exemplo.
Notas de rodapé
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GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1968, p. 197.
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CURTO, Diogo Ramada. A circulação das elites no império português. In: SCHAUB, Jean-Frédéric; CURTO, Diogo Ramada (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos. Lisboa: ICS, 2001, p. 35.
Referências Bibliográficas
CURTO, Diogo Ramada. A circulação das elites no império português. In: SCHAUB, Jean-Frédéric; CURTO, Diogo Ramada (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2001.
GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1968.
MATTOSO, José. Identificação de um país: ensaio sobre as origens de Portugal (1096–1325). Lisboa: Estampa, 1985.
VIEIRA, Padre António. Sermões. Lisboa: Círculo de Leitores, 2002.
SUÁREZ, Francisco. De Legibus ac Deo Legislatore. Madrid: BAC, 1965.
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