1. Introdução: quando a história se dobra à Divina Providência
A história não é uma sucessão aleatória de eventos. Há ritmos, padrões e ciclos em sua tessitura — e, por vezes, esses ciclos convergem de modo tão harmônico que se revelam como marcas do tempo de Deus na história dos homens. A União das Coroas Ibéricas (1580–1640) é uma dessas convergências. Durante sessenta anos, os impérios missionários de Portugal e Espanha estiveram sob um mesmo cetro, e esse período coincide não só com um auge civilizacional e espiritual — uma verdadeira Era de Ouro —, mas também com o tempo exato de um ciclo econômico de Kondratiev, cuja duração é de aproximadamente sessenta anos.
Mas há algo mais profundo ainda: esse período manifesta os sinais de um tempo kairológico — o tempo qualitativo da visitação divina, aquele em que a história recebe o influxo da eternidade e a missão de Cristo se manifesta com potência inconfundível.
2. Sessenta anos de união: plenitude imperial e espiritual
De 1580 a 1640, sob a Casa de Habsburgo, Portugal e Espanha operaram como uma só monarquia católica. Não se trata apenas de uma unificação política, mas de uma convergência espiritual, cultural e missionária:
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Os impérios missionários se fundem, levando o Evangelho a quatro continentes;
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O milagre de Guadalupe (1531) — já ocorrido, mas ainda circunscrito ao México — é difundido e torna-se símbolo de unidade entre povos europeus e indígenas;
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A ação da Companhia de Jesus se intensifica, com espanhois e portugueses atuando juntos na Ásia, África e América;
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A Contra-Reforma encontra expressão política concreta, com o poder monárquico atuando em favor da ortodoxia católica;
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A arte barroca floresce, dando forma visível ao espírito tridentino com exuberância sacramental.
Esse período marca, portanto, o cume de uma ordem católica universal visível, algo que nenhuma outra união política posterior conseguiu realizar com tamanha densidade espiritual.
3. Era de Ouro e tempo kairológico
A tradição bíblica e patrística distingue dois modos de tempo:
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Chronos (χρόνος): o tempo cronológico, marcado pela sucessão dos dias e dos eventos.
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Kairos (καιρός): o tempo qualitativo, o momento oportuno e providencial em que Deus age na história com potência escatológica.
Durante a União Ibérica, o tempo chronos é transcendido por um kairos missionário e civilizacional. Trata-se de um tempo:
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De convergência entre ação política e missão espiritual;
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De superação das rivalidades seculares em nome da fé comum;
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De simultaneidade global de ação evangelizadora, conectando os confins do mundo sob o mesmo batismo, o mesmo rito e a mesma esperança.
Essa unificação, com todos os seus defeitos terrenos, ainda assim se alinha à promessa de Cristo: “Ide e fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28,19). Trata-se, pois, de um kairos de plenitude geográfica e espiritual, como que um eco visível da catolicidade da Igreja.
4. O número sessenta e sua simbologia bíblica
O número sessenta não é arbitrário. Na Escritura, ele aparece como número de estrutura completa, ordem estabelecida e maturidade espiritual:
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Isaías 60: uma das mais belas profecias messiânicas, descrevendo a glória de Sião e a conversão das nações.
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Cânticos 6,8: “Sessenta são as rainhas, oitenta as concubinas...” — sessenta como número régio e pleno.
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Em Levítico e Números, múltiplos de seis aparecem em contextos de jubileu, restituição e sacralidade econômica.
O número sessenta também representa três vezes vinte, sendo vinte o número da espera e da maturação. Multiplicado por três, torna-se plenitude trinitária da espera — um selo de missão realizada e de estrutura sagrada prestes a ser transfigurada ou encerrada.
5. O ciclo de Kondratiev: tempo econômico e Providência
Nikolai Kondratiev (1892–1938), economista russo, observou que o capitalismo ocidental apresentava ciclos de longa duração, com aproximadamente 50 a 60 anos de crescimento, saturação e declínio. Esses ciclos envolvem:
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Inovações tecnológicas disruptivas;
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Expansão industrial e comercial;
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Período de maturação e crise;
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Transição para nova estrutura produtiva e espiritual.
Aplicado à União Ibérica, temos:
| Fase | Tempo histórico | Acontecimento |
|---|---|---|
| Expansão | 1580–1600 | Unificação missionária e comercial |
| Maturação | 1600–1620 | Conquista e estabilização dos territórios |
| Saturação | 1620–1640 | Resistência colonial, crises locais, declínio espiritual |
Essa leitura permite compreender que a história econômica obedece também a ritmos providenciais, e que o ciclo ibérico de sessenta anos cumpriu um papel essencial no plano da evangelização das nações.
6. O fim do kairos e o tempo da provação
O encerramento da União Ibérica em 1640 inaugura um novo ciclo: o tempo da dispersão e da resistência. Entre os sinais dessa nova fase, podemos destacar:
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O avanço das potências protestantes (Holanda, Inglaterra);
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A substituição da linguagem cristã pela retórica secular das soberanias nacionais;
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O surgimento do iluminismo e do racionalismo, que passam a corroer as bases da ordem espiritual;
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A queda das ordens religiosas, perseguidas por Estados absolutistas ou revolucionários;
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A paulatina substituição do Reino de Cristo pela religião dos direitos humanos.
O tempo kairológico se fecha. E a missão, que antes florescia na unidade dos impérios católicos, agora se torna trabalho de resistência em tempos adversos, ecoando as palavras de Cristo: “Virá a noite, quando ninguém poderá trabalhar” (Jo 9,4).
7. Conclusão: sessenta anos de plenitude nos méritos de Cristo
A União Ibérica foi mais do que um fato político. Foi:
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Uma Era de Ouro para a cultura e a missão católica;
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Um tempo kairológico, em que Deus visitou os povos ibéricos com uma responsabilidade histórica sem paralelo;
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Um ciclo providencial de sessenta anos, no qual a economia, a cultura e a fé se alinharam sob o estandarte de Cristo Rei.
Essa leitura não apenas dignifica o passado, mas aponta para o futuro. Pois, se houve um kairos na história ibérica, haverá outros kairoi — e o mesmo Deus que uniu reinos para evangelizar o mundo é Aquele que volta para julgar as nações.
Notas
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KONDRÁTIEV, Nikolai. The Major Economic Cycles. Moscow, 1925.
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TURNER, Frederick Jackson. The Significance of the Frontier in American History. 1893.
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CASTELLI, Enrico. O Tempo e a História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.
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Bíblia Sagrada. Tradução da CNBB. Brasília: Edições CNBB, 2008.
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FERRÃO, Francisco. A União Ibérica e a Missão Global. Lisboa: Gradiva, 2007.
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PIEPER, Josef. O Tempo e a Eternidade. Lisboa: Tenacitas, 2003.
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GONZÁLEZ, Justo L. A Era dos Descobrimentos e a Missão Cristã. São Paulo: Vida Nova, 2002.
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