Resumo
Este artigo propõe uma reflexão sobre o retrogaming como prática que transcende a nostalgia e se estrutura como atitude crítica diante da lógica de consumo da indústria dos jogos eletrônicos. Argumenta-se que o retrogamer, longe de ser alguém preso ao passado, é aquele que, ao valorizar experiências consolidadas e acessíveis, antecipa o futuro e sustenta uma forma de consumo mais racional e historicamente consciente.
Palavras-chave: retrogaming; indústria de jogos; consumo tecnológico; sustentabilidade digital; cultura gamer.
Introdução
A indústria de jogos eletrônicos tornou-se uma das mais lucrativas e influentes do mundo. No entanto, por trás do apelo das grandes produções, dos gráficos de última geração e do marketing agressivo, esconde-se uma lógica que associa a experiência do jogo ao consumo imediato de hardware de ponta. Quem comercializa jogos, na prática, comercializa experiências — e essas experiências exigem máquinas que estejam à altura do que os desenvolvedores projetaram.
1. O jogo como experiência e a lógica do agora
Um jogo não é apenas um produto técnico; ele é um universo interativo, uma forma narrativa e sensorial que envolve o jogador de maneira total. Essa experiência, no entanto, não pode ser dissociada do suporte técnico que a viabiliza. Os requisitos mínimos e recomendados de hardware funcionam como um filtro social e econômico: quem pode jogar o lançamento com qualidade está, de fato, vivendo a experiência completa; quem não pode, vive apenas um esboço.
Diante disso, o consumidor comum de jogos, o chamado gamer, é frequentemente compelido a investir em upgrades constantes, numa lógica de obsolescência programada que favorece a indústria, mas penaliza o jogador¹. Essa corrida constante pelo “último lançamento” acaba por fragmentar a comunidade gamer e excluir muitos da plena fruição das experiências.
2. A prudência do retrogamer
Enquanto o gamer médio deseja o agora, o retrogamer age com prudência: sabe que, no futuro, o acesso a boas experiências será democratizado, quando os hardwares de hoje se tornarem acessíveis. Assim, o retrogamer espera. E, enquanto espera, joga o que já está consolidado, o que já provou seu valor estético e técnico. Com isso, ele se situa fora da lógica da ansiedade de consumo e adota uma postura econômica, histórica e filosófica.
Retrogaming, nesse sentido, não é simplesmente jogar “jogos velhos”. É sustentar um modelo de experiência que respeita o tempo, a memória e o investimento. É compreender que o jogo, como obra cultural, permanece valioso mesmo fora do hype — e que o prazer de jogar pode ser mais pleno quando liberto das pressões do consumo.
3. Retrogaming como cultura e estilo de vida
Retrogaming é, também, uma forma de resistência. Uma cultura própria, com fóruns, comunidades, festivais, museus digitais e colecionadores que mantêm viva a história da indústria de jogos². É um estilo de vida digital que aposta na sustentabilidade, na preservação e no respeito à tradição da mídia.
Assim como o colecionador de vinil resgata o valor da música em sua materialidade analógica, o retrogamer resgata o valor da jogabilidade, da estética e da inovação dos jogos de outras eras — muitos dos quais ainda superam em design e desafio títulos contemporâneos³.
Conclusão
Enquanto o mundo monta a máquina do futuro, o retrogamer monta o melhor emulador para viver o passado com dignidade. E, paradoxalmente, ao fazer isso, ele se antecipa. Pois sabe que, no tempo certo, o jogo do presente será acessível e sua experiência, plena. Retrogaming, portanto, não é olhar para trás com saudade, mas olhar para frente com sabedoria.
Referências Bibliográficas
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Dyer-Witheford, N.; De Peuter, G. Games of Empire: Global Capitalism and Video Games. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009.
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Huhtamo, E. “Slots of Fun, Slots of Trouble: An Archaeology of Arcade Gaming.” In: Handbook of Computer Game Studies. Cambridge: MIT Press, 2005.
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Donovan, T. Replay: The History of Video Games. Lewes: Yellow Ant, 2010.
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Juul, J. The Art of Failure: An Essay on the Pain of Playing Video Games. Cambridge: MIT Press, 2013.
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Newman, J. Best Before: Videogames, Supersession and Obsolescence. New York: Routledge, 2012.
Notas de Rodapé
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Sobre a lógica de obsolescência programada no universo dos jogos, ver Dyer-Witheford & De Peuter (2009, p. 148), que analisam a produção constante de novos hardwares como parte da estratégia de expansão de lucros da indústria.
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Há um crescente número de museus digitais dedicados à preservação dos jogos clássicos, como o Internet Archive (https://archive.org/details/softwarelibrary_msdos_games), que mantém versões jogáveis em emuladores online de títulos dos anos 1980 e 1990.
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Jogos como Chrono Trigger (1995) ou Planescape: Torment (1999) continuam sendo referência em narrativa, mecânica e design, sendo frequentemente citados em listas de melhores jogos da história, mesmo após décadas de seu lançamento.
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