Resumo
Este artigo propõe a leitura da cidade de Dublin como elo civilizacional entre os centros culturais de Nova Iorque, Londres e São Petersburgo. A hipótese é que existe uma rota simbólica, histórica e geopolítica que conecta o Ocidente anglo-americano ao Oriente eslavo-cristão, na qual Dublin exerce o papel de ponto de inflexão. A análise parte de eventos históricos como a diáspora irlandesa, a expansão do Império Britânico e a fundação de São Petersburgo como janela da Rússia para o Ocidente, percorrendo caminhos linguísticos, culturais e diplomáticos. O objetivo é mapear uma trilha civilizatória que conecta os três polos por meio de uma geografia simbólica.
1. Introdução
Ao longo dos séculos, as cidades tornaram-se mais do que meros espaços de aglomeração populacional: transformaram-se em símbolos vivos de civilizações, articulando relações entre cultura, economia e poder. Neste contexto, é possível propor que Dublin, capital da Irlanda, exerce uma função peculiar como elo entre o mundo anglo-americano e o universo eslavo-europeu. Entre Nova Iorque, metrópole do capitalismo moderno, e São Petersburgo, símbolo do desejo russo de europeização, Dublin é ponto de contato cultural, histórico e linguístico que viabiliza a mediação entre mundos.
2. Dublin e a ponte atlântica
2.1. A diáspora irlandesa
Entre 1845 e 1852, a Irlanda sofreu com a Grande Fome (Great Famine), que forçou milhões de irlandeses à emigração. Estima-se que cerca de 1,5 milhão de pessoas emigraram para os Estados Unidos durante esse período, estabelecendo grandes comunidades em cidades como Nova Iorque, Boston e Chicago (MILLER, 1985).
"A cultura irlandesa, com seus valores comunitários, seu catolicismo resiliente e sua oralidade poética, teve profundo impacto na vida cultural americana" (IGNATIEV, 1995, p. 43).
Essa emigração massiva levou a uma espécie de duplicação cultural da Irlanda nos EUA, especialmente em Nova Iorque, onde o Dia de São Patrício é celebrado com mais fervor do que na própria Irlanda. Assim, Dublin tornou-se um símbolo compartilhado entre dois mundos — o da origem e o da promessa.
2.2. A Dublin do século XXI
Atualmente, Dublin é hub europeu para empresas norte-americanas, graças a políticas fiscais favoráveis da República da Irlanda. Grandes corporações como Google, Facebook, Apple e Microsoft estabeleceram sedes operacionais na cidade, intensificando o papel de Dublin como plataforma intermediária entre os EUA e a Europa (O’SULLIVAN, 2019).
3. Londres como centro de articulação imperial
Londres foi durante séculos o coração do Império Britânico, cuja presença na Irlanda, nas treze colônias e nas relações com o Império Russo moldou o mundo moderno. Na segunda metade do século XIX, o eixo Londres-São Petersburgo foi marcado por um equilíbrio tênue entre rivalidade e colaboração.
“O Império Britânico, apesar de sua oposição formal ao expansionismo russo, via São Petersburgo como parte de uma civilização europeia com a qual era possível negociar e à qual se opunha apenas nos termos da Realpolitik” (FERGUSON, 2004, p. 223).
Do ponto de vista da geopolítica, Londres representa o centro de cálculo racional da expansão ocidental — articulando Dublin e Nova Iorque como extensões periféricas de sua lógica imperial.
4. São Petersburgo e a janela para o Ocidente
São Petersburgo foi fundada por Pedro, o Grande, em 1703, com o propósito explícito de ser uma janela da Rússia para o Ocidente. A cidade foi projetada com influência direta de arquitetos europeus, sobretudo italianos e alemães, espelhando-se em capitais como Amsterdã e Paris (HUGHES, 2002).
"São Petersburgo não foi apenas uma cidade construída no pântano, mas uma cidade construída sobre uma ideia: a de que a Rússia poderia ser europeia" (RANCIÈRE, 2014, p. 97).
No século XIX, a cidade tornou-se o centro de uma elite cosmopolita que lia Shakespeare e Byron, falava francês e mantinha correspondência com intelectuais de Londres. Por esse caminho, Londres conecta-se a São Petersburgo também como interlocutora cultural, e não apenas diplomática.
5. A rota civilizacional: de Nova Iorque a São Petersburgo via Dublin e Londres
Essa linha imaginária entre Nova Iorque e São Petersburgo, passando por Dublin e Londres, pode ser vista como um eixo simbólico da modernidade cristã-ocidental, ligando:
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o Novo Mundo americano (Nova Iorque),
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a velha tradição católica (Dublin),
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o racionalismo imperial britânico (Londres),
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e o cristianismo ortodoxo imperial (São Petersburgo).
É uma trilha de expansão cultural, onde cada cidade representa uma etapa da tensão entre liberdade e ordem, entre tradição e modernização. Dublin, nesse sentido, é a dobra da história: por onde passa tanto a memória da fé católica quanto o avanço da racionalidade anglo-saxã.
Conclusão
A leitura de Dublin como elo entre Nova Iorque, Londres e São Petersburgo permite enxergar a cidade como mais do que um território insular: ela é um portal simbólico que liga diferentes civilizações sob a moldura comum do cristianismo, da modernidade e do conflito entre centro e periferia. Ao percorrermos essa rota, entendemos não apenas como as ideias circulam, mas também como se estruturam as geografias da alma ocidental, que ainda hoje disputam o futuro da civilização.
Referências
FERGUSON, Niall. Empire: How Britain Made the Modern World. Londres: Penguin Books, 2004.
HUGHES, Lindsey. Russia in the Age of Peter the Great. New Haven: Yale University Press, 2002.
IGNATIEV, Noel. How the Irish Became White. Nova Iorque: Routledge, 1995.
MILLER, Kerby A. Emigrants and Exiles: Ireland and the Irish Exodus to North America. Oxford: Oxford University Press, 1985.
O’SULLIVAN, Patrick. Ireland and the Global Technology Economy. Dublin: Institute for International and European Affairs, 2019.
RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento: Política e Filosofia. São Paulo: 34, 2014.
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