A cisão moral no espelho da Marianne revolucionária
Certa ocasião, ao explorar perfis no Amal Date — plataforma para quem busca um relacionamento com alguma orientação espiritual ou ideal de vida elevado — deparei-me com a seguinte descrição: “De dia, conto números; à noite, conto pecados.” A autora da frase era uma jovem contadora. A intenção, presume-se, era soar espirituosa. Mas quem reflete com mais cuidado percebe que a frase revela um problema muito mais profundo: a dissociação entre o labor técnico e a vida moral, ou seja, a perda da unidade de vida.
Tal declaração parece confessar, com vaidade e sem arrependimento, uma vida dupla. A mulher que passa o dia gerando posições credoras para empresas assume, à noite, a condição de devedora diante de Deus — mas o faz não com espírito de penitência, e sim com uma leveza debochada, quase como um troféu narrativo. Não há aqui qualquer pudor ou senso de conversão. O pecado se torna matéria de marketing pessoal.
Isso denigre não apenas a própria profissão — cuja dignidade se funda na fidelidade aos números e à verdade objetiva — como compromete, desde já, a possibilidade de qualquer vida a dois firmada sobre a confiança, a sinceridade e a fé. A frase revela, em si, uma fratura de ordem espiritual.
Marianne: símbolo da cisão revolucionária
A duplicidade moral aqui exposta encontra um símbolo preciso na figura de Marianne, alegoria da Revolução Francesa. Com o barrete frígio da liberdade, peito nu e olhar altivo, Marianne representa o ideal revolucionário de liberdade absoluta, desvinculada da Verdade eterna. Sua imagem substitui os santos nas repartições públicas da França desde o século XIX. Onde antes havia crucifixos, hoje há bustos dessa mulher fictícia — laïque, anticlerical, emancipadora.
Marianne é, portanto, a mulher que nega sua vocação como serva do Altíssimo, para tornar-se serva de ideais humanos e políticos. Sob sua lógica, o pecado não existe, ou se existe, não importa. A moral é subjetiva, adaptável, e a liberdade é entendida como autonomia total: liberdade de pecar, de zombar, de redefinir a si mesma diariamente.
A moça que publica em seu perfil uma frase como “de noite conto pecados” mostra-se herdeira dessa tradição. É a Marianne que sorri diante da queda, porque já não crê no Céu. É a contadora que vive para os números, mas zomba da contabilidade da alma — como se esta fosse irrelevante. É, enfim, o arquétipo da mulher moderna que se tornou incapaz de amar a verdade inteira.
Como advertiu o Papa Bento XVI:
“A liberdade de se entregar ao bem está em crise. É como se o homem se tivesse cansado da sua liberdade.”
— Joseph Ratzinger, Homilia de Corpus Christi, 2005.
A unidade de vida: exigência do amor verdadeiro
O cristianismo exige unidade de vida. Trata-se da exigência de que o homem seja íntegro em todos os seus papéis: profissional, pessoal, espiritual. Quem vive uma cisão entre o que faz e o que é torna-se, aos poucos, duplo — e a duplicidade é contrária à verdade. Como ensina a Escritura:
“Antes, seja o vosso falar: Sim, sim; não, não. O que passa disso vem do maligno.”
— Mateus 5,37
A vocação conjugal não é uma parceria entre personas fragmentadas. É uma aliança entre inteiros. O amor, para ser verdadeiro, precisa estar fundado na realidade total da pessoa — e isso inclui sua vida moral. O pecado não é um detalhe engraçado da noite, mas uma ferida que, quando não tratada, se torna incompatível com a construção de um lar em Cristo.
Olavo de Carvalho, com sua agudeza habitual, advertia que “a diferença entre um canalha e um homem honesto não é que um peque e o outro não — é que o canalha se orgulha disso.” Eis aqui o ponto central: o pecado orgulhoso, ostentado com ironia, é aquilo que impossibilita qualquer crescimento em direção ao bem.
A contabilidade espiritual e a verdadeira riqueza
Curiosamente, a linguagem da contabilidade aparece várias vezes nas Escrituras e nos documentos da Igreja. O Papa Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum (1891), chama de capital o acúmulo de bens obtido através do trabalho honesto e diligente ao longo do tempo, e vê nisso não um mal, mas um dever da justiça distributiva:
“O capital é o trabalho acumulado ao longo do tempo, que, unido ao trabalho atual, favorece a multiplicação dos bens.”
— Leão XIII, Rerum Novarum, §27
Mas se isso é verdade no campo econômico, com muito mais razão o é na alma. O verdadeiro capital de uma pessoa está na sua fidelidade cotidiana à verdade. Cada gesto, cada escolha moral, cada renúncia ao pecado e cada ato de justiça somam-se como créditos diante de Deus. O pecado não confessado, zombado ou celebrado é uma dívida que cresce. E, como lembra São Paulo, “o salário do pecado é a morte” (Rm 6,23).
Conclusão: o discernimento como defesa da dignidade
Frases como “conto pecados à noite” não são inofensivas. Elas revelam o que está na alma. São como os olhos dos perfis: dizem o que a pessoa pensa da própria vida. Uma mulher que se orgulha do pecado, ainda que em tom irônico, não é digna de alguém que busca viver nos méritos de Cristo. Isso não é julgamento pessoal, mas discernimento. E discernir é proteger a própria vocação, a própria alma, e o futuro de uma possível família.
É preciso resistir à lógica de Marianne — a da cisão, da liberdade sem verdade, do humor sem pudor. E abraçar a lógica de Maria, Mãe de Deus, ícone da mulher inteira, que viveu sem divisão entre o que fazia e o que era. Porque, ao fim, só a verdade une. E só o amor unido à verdade liberta.
Bibliografia:
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Bento XVI. Homilia de Corpus Christi, 2005.
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Leão XIII. Rerum Novarum, 1891.
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Bíblia Sagrada. Tradução Ave-Maria. São Paulo: Paulus, 2001.
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Carvalho, Olavo de. O Jardim das Aflições. 6ª ed. São Paulo: Record, 2015.
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