Resumo
Este artigo propõe uma reflexão sobre o trabalho simbólico do homem a partir da metáfora platônica do “bípede implume”, articulando antropologia cristã, economia simbólica e sacramentalidade. Com base em São Tomás de Aquino, João Paulo II, Bento XVI, Francisco, Mircea Eliade e Louis-Marie Chauvet, o texto desenvolve a tese de que a missão do homem redimido é converter bens simbólicos em realidades sacramentais por meio do trabalho cultural, espiritual e litúrgico. Essa conversão exige não apenas técnica, mas uma economia salvífica fundada nos méritos de Cristo.
Palavras-chave: economia salvífica, simbolismo, sacramento, trabalho, mediação, João Paulo II, Bento XVI, Francisco, São Tomás, Eliade, Chauvet.
1. O homem como ave e portador de sementes simbólicas
Platão, ao definir ironicamente o homem como um “bípede implume”¹, levanta, ainda que de forma caricatural, uma questão profunda sobre a natureza humana. A imagem da ave nos remete à mobilidade, à capacidade de levar sementes de um lugar a outro — e, por analogia, o homem também transporta sementes simbólicas: hábitos, narrativas, símbolos e formas que podem fecundar outras culturas.
No contexto cristão, essas sementes não são neutras: são portadoras de sentido escatológico, pois apontam para Cristo, e têm como objetivo final a integração de todas as realidades no Reino de Deus. Nesse sentido, o homem em missão não é apenas um difusor cultural, mas um pescador de homens, um costureiro de símbolos, um construtor de pontes.
2. Carl Menger e a estrutura dos bens econômicos
Segundo Carl Menger², os bens econômicos podem ser divididos em ordens. Os de primeira ordem satisfazem diretamente as necessidades humanas, como alimento e vestuário; os de segunda ordem são meios para produzir os primeiros, como ferramentas ou processos. Essa distinção se aplica aos bens materiais com clareza funcional. No entanto, quando o objeto em questão é o símbolo, a conversão entre ordens exige mais do que técnica: exige mediação espiritual e trabalho cultural.
O símbolo, diferentemente do bem material, não se consome; ele se interpreta, se encarna e se celebra. É por isso que os bens simbólicos requerem uma economia específica: uma economia salvífica, onde o valor não está apenas na utilidade, mas na capacidade de mediar realidades invisíveis.
3. São Tomás de Aquino: ordem do bem e mediação racional
São Tomás de Aquino oferece o arcabouço metafísico necessário para compreender a hierarquia dos bens. Para ele, todo bem participa do Bem Supremo e possui sua finalidade última em Deus³. Há, portanto, uma ordem no amor (ordo amoris) que organiza os bens segundo sua proximidade com o fim último.
A mediação simbólica só é possível porque o homem possui intelecto, memória e vontade ordenadas à Verdade. Ao traduzir símbolos, interpretar tradições e ordenar bens ao fim sobrenatural, o homem realiza sua função própria como criatura racional que participa do governo divino⁴. Nesse trabalho, ele cumpre seu papel como sacerdote da criação.
4. João Paulo II: o trabalho como vocação e liturgia
A encíclica Laborem Exercens⁵ define o trabalho como cooperação com o ato criador de Deus. O homem, ao trabalhar, não apenas transforma a natureza, mas transforma a si mesmo. Esta transformação é ainda mais profunda quando o trabalho se torna liturgia do cotidiano, isto é, mediação concreta entre o visível e o invisível.
João Paulo II afirma:
“Unido a Cristo, o trabalho humano torna-se meio de santificação”⁶.
Isso vale especialmente para o trabalho simbólico, que exige fidelidade à verdade e amor à cultura alheia. O missionário cristão que traduz, costura e integra símbolos distintos num só corpo — a Igreja — está realizando um trabalho redentor, nos méritos de Cristo.
5. Economia simbólica e o sagrado segundo Mircea Eliade
Para Mircea Eliade⁷, a função do símbolo é romper com a banalidade do tempo profano e reconectar o homem com o sagrado. Toda cultura tradicional é organizada por símbolos e mitos que orientam o homem verticalmente. Quando esses símbolos se perdem ou são esvaziados, instala-se o caos: o tempo se torna linear e o espaço perde seu centro.
O cristão que semeia símbolos entre culturas está restaurando o eixo vertical da realidade, e não apenas estabelecendo relações utilitárias. Como diz Eliade:
“O símbolo revela certos aspectos da realidade — os mais profundos — que desafiam qualquer outro meio de conhecimento”⁸.
Neste contexto, o homem não apenas semeia: ele reordena o mundo a partir do Cristo, o Logos que dá sentido a todas as coisas.
6. Louis-Marie Chauvet: sacramentalidade e mediação
Louis-Marie Chauvet⁹ propõe que os sacramentos são símbolos eficazes, por meio dos quais a graça de Deus se comunica. Diferentemente da eficiência técnica, o símbolo sacramental exige abertura, fé e comunidade. Ele é mediação frágil, mas necessária.
Chauvet afirma:
“Não se chega a Deus senão pelo simbólico”¹⁰.
Isso se aplica também ao trabalho simbólico fora da liturgia: quando o cristão age no mundo por meio de sinais que apontam para Cristo, ele está realizando uma ação sacramental em sentido amplo. Ele não apenas comunica, mas integra o outro na comunhão.
7. Bento XVI: verdade, caridade e desenvolvimento humano
Na encíclica Caritas in Veritate¹¹, Bento XVI afirma que todo desenvolvimento autêntico deve unir caridade e verdade. A economia moderna sofre, segundo ele, porque exclui a verdade do amor — e com isso rompe o elo entre técnica e sabedoria.
“O amor caritas é a força extraordinária que impele as pessoas a comprometerem-se com coragem e generosidade no campo da justiça e da paz” (CIV, §1).
O símbolo, nessa chave, não é apenas comunicação: é expressão de uma verdade doada, algo que só ganha sentido dentro da economia da gratuidade (CIV, §34). A mediação entre culturas, como propõe este artigo, é um trabalho de amor, mas também de verdade — e só se sustenta nos méritos de Cristo.
8. Francisco: cultura do encontro e evangelização simbólica
Na Evangelii Gaudium¹², Francisco destaca que a evangelização deve se encarnar nas culturas, não como imposição, mas como encarnação da Palavra. O símbolo, nesse processo, é instrumento de encontro:
“A cultura não é apenas objeto da evangelização, mas sujeito ativo” (EG, §116).
Ao traduzir símbolos entre mundos diferentes, o missionário cristão não apenas ensina: costura vínculos, reconfigura espaços, torna o “estrangeiro” um “irmão”. Evangelizar é integrar simbolicamente o outro na mesma história de salvação. Isso exige trabalho, escuta e discernimento — tudo nos méritos de Cristo.
9. Conclusão
A metáfora do “bípede implume” nos leva a reconhecer que o homem cristão é mais que um portador de cultura: ele é sacerdote, costureiro, pescador e construtor. Sua missão é transformar realidades diversas num só corpo, num só lar, em Cristo, por Cristo e para Cristo.
Este trabalho, que combina razão, vontade, amor e técnica, só se realiza plenamente quando vivido na economia salvífica. Nele, o símbolo é mediado, o bem é ordenado, e o mundo visível torna-se imagem do invisível. Esta é a verdadeira economia cristã: onde tudo serve à realeza de Cristo, o único capaz de converter sementes em árvores eternas e pontes em comunhão.
Notas
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PLATÃO. Teeteto, 185e.
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MENGER, Carl. Princípios de economia política.
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AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I, q. 5, a. 1.
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Idem, I-II, q. 19, a. 10.
-
JOÃO PAULO II. Laborem Exercens, 1981.
-
Ibid., §24.
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ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano.
-
Ibid., p. 14.
-
CHAUVET, Louis-Marie. Symbol and Sacrament.
-
Ibid., p. 101.
-
BENTO XVI. Caritas in Veritate, 2009.
-
FRANCISCO. Evangelii Gaudium, 2013.
Referências
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Trad. Frei Leonardo de Mattos. São Paulo: Loyola, 2001.
BENTO XVI. Caritas in Veritate. Vaticano, 29 jun. 2009. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html. Acesso em: 1 jul. 2025.
CHAUVET, Louis-Marie. Symbol and Sacrament: A Sacramental Reinterpretation of Christian Existence. Collegeville: Liturgical Press, 1995.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FRANCISCO. Evangelii Gaudium. Exortação apostólica. Vaticano, 24 nov. 2013. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html. Acesso em: 1 jul. 2025.
JOÃO PAULO II. Laborem Exercens. Carta encíclica. Vaticano, 14 set. 1981. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091981_laborem-exercens.html. Acesso em: 1 jul. 2025.
MENGER, Carl. Princípios de economia política. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2007.
PLATÃO. Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2002.
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