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terça-feira, 1 de julho de 2025

Do bípede implume ao construtor de pontes: economia salvífica e a mediação dos bens nos méritos de Cristo

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre o trabalho simbólico do homem a partir da metáfora platônica do “bípede implume”, articulando antropologia cristã, economia simbólica e sacramentalidade. Com base em São Tomás de Aquino, João Paulo II, Bento XVI, Francisco, Mircea Eliade e Louis-Marie Chauvet, o texto desenvolve a tese de que a missão do homem redimido é converter bens simbólicos em realidades sacramentais por meio do trabalho cultural, espiritual e litúrgico. Essa conversão exige não apenas técnica, mas uma economia salvífica fundada nos méritos de Cristo.

Palavras-chave: economia salvífica, simbolismo, sacramento, trabalho, mediação, João Paulo II, Bento XVI, Francisco, São Tomás, Eliade, Chauvet.

1. O homem como ave e portador de sementes simbólicas

Platão, ao definir ironicamente o homem como um “bípede implume”¹, levanta, ainda que de forma caricatural, uma questão profunda sobre a natureza humana. A imagem da ave nos remete à mobilidade, à capacidade de levar sementes de um lugar a outro — e, por analogia, o homem também transporta sementes simbólicas: hábitos, narrativas, símbolos e formas que podem fecundar outras culturas.

No contexto cristão, essas sementes não são neutras: são portadoras de sentido escatológico, pois apontam para Cristo, e têm como objetivo final a integração de todas as realidades no Reino de Deus. Nesse sentido, o homem em missão não é apenas um difusor cultural, mas um pescador de homens, um costureiro de símbolos, um construtor de pontes.

2. Carl Menger e a estrutura dos bens econômicos

Segundo Carl Menger², os bens econômicos podem ser divididos em ordens. Os de primeira ordem satisfazem diretamente as necessidades humanas, como alimento e vestuário; os de segunda ordem são meios para produzir os primeiros, como ferramentas ou processos. Essa distinção se aplica aos bens materiais com clareza funcional. No entanto, quando o objeto em questão é o símbolo, a conversão entre ordens exige mais do que técnica: exige mediação espiritual e trabalho cultural.

O símbolo, diferentemente do bem material, não se consome; ele se interpreta, se encarna e se celebra. É por isso que os bens simbólicos requerem uma economia específica: uma economia salvífica, onde o valor não está apenas na utilidade, mas na capacidade de mediar realidades invisíveis.

3. São Tomás de Aquino: ordem do bem e mediação racional

São Tomás de Aquino oferece o arcabouço metafísico necessário para compreender a hierarquia dos bens. Para ele, todo bem participa do Bem Supremo e possui sua finalidade última em Deus³. Há, portanto, uma ordem no amor (ordo amoris) que organiza os bens segundo sua proximidade com o fim último.

A mediação simbólica só é possível porque o homem possui intelecto, memória e vontade ordenadas à Verdade. Ao traduzir símbolos, interpretar tradições e ordenar bens ao fim sobrenatural, o homem realiza sua função própria como criatura racional que participa do governo divino⁴. Nesse trabalho, ele cumpre seu papel como sacerdote da criação.

4. João Paulo II: o trabalho como vocação e liturgia

A encíclica Laborem Exercens⁵ define o trabalho como cooperação com o ato criador de Deus. O homem, ao trabalhar, não apenas transforma a natureza, mas transforma a si mesmo. Esta transformação é ainda mais profunda quando o trabalho se torna liturgia do cotidiano, isto é, mediação concreta entre o visível e o invisível.

João Paulo II afirma:

“Unido a Cristo, o trabalho humano torna-se meio de santificação”⁶.

Isso vale especialmente para o trabalho simbólico, que exige fidelidade à verdade e amor à cultura alheia. O missionário cristão que traduz, costura e integra símbolos distintos num só corpo — a Igreja — está realizando um trabalho redentor, nos méritos de Cristo.

5. Economia simbólica e o sagrado segundo Mircea Eliade

Para Mircea Eliade⁷, a função do símbolo é romper com a banalidade do tempo profano e reconectar o homem com o sagrado. Toda cultura tradicional é organizada por símbolos e mitos que orientam o homem verticalmente. Quando esses símbolos se perdem ou são esvaziados, instala-se o caos: o tempo se torna linear e o espaço perde seu centro.

O cristão que semeia símbolos entre culturas está restaurando o eixo vertical da realidade, e não apenas estabelecendo relações utilitárias. Como diz Eliade:

“O símbolo revela certos aspectos da realidade — os mais profundos — que desafiam qualquer outro meio de conhecimento”⁸.

Neste contexto, o homem não apenas semeia: ele reordena o mundo a partir do Cristo, o Logos que dá sentido a todas as coisas.

6. Louis-Marie Chauvet: sacramentalidade e mediação

Louis-Marie Chauvet⁹ propõe que os sacramentos são símbolos eficazes, por meio dos quais a graça de Deus se comunica. Diferentemente da eficiência técnica, o símbolo sacramental exige abertura, fé e comunidade. Ele é mediação frágil, mas necessária.

Chauvet afirma:

“Não se chega a Deus senão pelo simbólico”¹⁰.

Isso se aplica também ao trabalho simbólico fora da liturgia: quando o cristão age no mundo por meio de sinais que apontam para Cristo, ele está realizando uma ação sacramental em sentido amplo. Ele não apenas comunica, mas integra o outro na comunhão.

7. Bento XVI: verdade, caridade e desenvolvimento humano

Na encíclica Caritas in Veritate¹¹, Bento XVI afirma que todo desenvolvimento autêntico deve unir caridade e verdade. A economia moderna sofre, segundo ele, porque exclui a verdade do amor — e com isso rompe o elo entre técnica e sabedoria.

“O amor caritas é a força extraordinária que impele as pessoas a comprometerem-se com coragem e generosidade no campo da justiça e da paz” (CIV, §1).

O símbolo, nessa chave, não é apenas comunicação: é expressão de uma verdade doada, algo que só ganha sentido dentro da economia da gratuidade (CIV, §34). A mediação entre culturas, como propõe este artigo, é um trabalho de amor, mas também de verdade — e só se sustenta nos méritos de Cristo.

8. Francisco: cultura do encontro e evangelização simbólica

Na Evangelii Gaudium¹², Francisco destaca que a evangelização deve se encarnar nas culturas, não como imposição, mas como encarnação da Palavra. O símbolo, nesse processo, é instrumento de encontro:

“A cultura não é apenas objeto da evangelização, mas sujeito ativo” (EG, §116).

Ao traduzir símbolos entre mundos diferentes, o missionário cristão não apenas ensina: costura vínculos, reconfigura espaços, torna o “estrangeiro” um “irmão”. Evangelizar é integrar simbolicamente o outro na mesma história de salvação. Isso exige trabalho, escuta e discernimento — tudo nos méritos de Cristo.

9. Conclusão

A metáfora do “bípede implume” nos leva a reconhecer que o homem cristão é mais que um portador de cultura: ele é sacerdote, costureiro, pescador e construtor. Sua missão é transformar realidades diversas num só corpo, num só lar, em Cristo, por Cristo e para Cristo.

Este trabalho, que combina razão, vontade, amor e técnica, só se realiza plenamente quando vivido na economia salvífica. Nele, o símbolo é mediado, o bem é ordenado, e o mundo visível torna-se imagem do invisível. Esta é a verdadeira economia cristã: onde tudo serve à realeza de Cristo, o único capaz de converter sementes em árvores eternas e pontes em comunhão.

Notas

  1. PLATÃO. Teeteto, 185e.

  2. MENGER, Carl. Princípios de economia política.

  3. AQUINO, Tomás. Suma Teológica, I, q. 5, a. 1.

  4. Idem, I-II, q. 19, a. 10.

  5. JOÃO PAULO II. Laborem Exercens, 1981.

  6. Ibid., §24.

  7. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano.

  8. Ibid., p. 14.

  9. CHAUVET, Louis-Marie. Symbol and Sacrament.

  10. Ibid., p. 101.

  11. BENTO XVI. Caritas in Veritate, 2009.

  12. FRANCISCO. Evangelii Gaudium, 2013.

Referências 

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Trad. Frei Leonardo de Mattos. São Paulo: Loyola, 2001.

BENTO XVI. Caritas in Veritate. Vaticano, 29 jun. 2009. Disponível em: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html. Acesso em: 1 jul. 2025.

CHAUVET, Louis-Marie. Symbol and Sacrament: A Sacramental Reinterpretation of Christian Existence. Collegeville: Liturgical Press, 1995.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FRANCISCO. Evangelii Gaudium. Exortação apostólica. Vaticano, 24 nov. 2013. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html. Acesso em: 1 jul. 2025.

JOÃO PAULO II. Laborem Exercens. Carta encíclica. Vaticano, 14 set. 1981. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091981_laborem-exercens.html. Acesso em: 1 jul. 2025.

MENGER, Carl. Princípios de economia política. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2007.

PLATÃO. Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2002.

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