Resumo
Este artigo analisa a trajetória recente da economia japonesa, destacando os fatores estruturais que levaram ao aumento exponencial da dívida pública, à estagnação prolongada e à crise demográfica que compromete a sustentabilidade fiscal do país. Também se examina a importância do Japão para o equilíbrio dos mercados financeiros internacionais, especialmente no contexto do chamado carry trade do iene. A partir de 2024, mudanças nas políticas monetárias e demográficas, sob a liderança do primeiro-ministro Shigeru Ishiba, sinalizam uma transição crítica que pode ter impactos globais.
1. Introdução
Durante décadas, o Japão desempenhou um papel central no financiamento da economia mundial. A robustez de seus fundos de pensão, a estabilidade de seu sistema bancário e a confiabilidade de seu governo o tornaram um dos principais credores do planeta. No entanto, mudanças profundas no cenário interno — notadamente o envelhecimento populacional e o aumento da dívida pública — colocam em risco essa posição histórica. A pergunta que se impõe é: o Japão está à beira de um colapso econômico ou atravessa um processo de reorganização estrutural?
2. A Dívida Pública e a Sustentabilidade Fiscal
O Japão possui, atualmente, a maior relação dívida/PIB entre as economias desenvolvidas: cerca de 260% do Produto Interno Bruto¹. Isso representa mais do que o dobro do montante da economia real do país. Para fins de comparação, os Estados Unidos, frequentemente criticados por seu elevado endividamento, apresentam um índice em torno de 125% no mesmo período².
Segundo declarações do próprio primeiro-ministro Shigeru Ishiba, empossado em outubro de 2024, a situação fiscal do Japão é mais grave do que a da Grécia no auge da crise do euro, em 2010³. Esse diagnóstico, vindo da maior autoridade política nacional, reforça a urgência de reestruturar as finanças públicas e enfrentar desafios de longo prazo.
3. Demografia e Crise Populacional
A estrutura demográfica japonesa passou por uma transformação acelerada nas últimas décadas. Em 2024, o número de nascimentos no país foi de 720,9 mil, enquanto o número de óbitos superou 1,62 milhão⁴. Esse desequilíbrio implica uma retração populacional contínua, agravada pela baixa taxa de fecundidade — atualmente em torno de 1,2 filho por mulher, muito abaixo da taxa de reposição populacional (2,1).
As projeções demográficas indicam que a população japonesa, que era de 128 milhões em 2010, deve cair para menos de 105 milhões em 2050, podendo atingir 87 milhões em 2060⁵. Essa transformação resulta em três efeitos diretos: queda na força de trabalho, redução da base arrecadatória e aumento dos gastos com aposentadorias e saúde. O resultado é um ciclo de retroalimentação negativa, no qual o Estado precisa gastar mais com menos recursos.
4. A Era da Estagnação: “Décadas Perdidas”
O estouro da bolha imobiliária no início da década de 1990 marcou o início de uma longa fase de estagnação econômica no Japão, conhecida como as **"décadas perdidas"**⁶. Nesse período, o crescimento do PIB foi anêmico, os índices de consumo caíram e o governo passou a sustentar artificialmente a economia por meio de déficits fiscais e obras públicas.
Mesmo em momentos de bonança, como na década de 2000, o orçamento japonês manteve-se em desequilíbrio. A estratégia de financiamento por endividamento foi intensificada após eventos de impacto, como a crise financeira de 2008, o terremoto de 2011, o acidente nuclear de Fukushima e a pandemia de COVID-19. A combinação de gastos emergenciais e arrecadação fraca empurrou o país para o atual estado crítico.
5. Política Monetária e o Carry Trade do Iene
Para controlar a estagnação, o Banco do Japão adotou políticas monetárias não convencionais, como taxas de juros negativas e flexibilização quantitativa, o que significa, na prática, imprimir dinheiro para comprar títulos da dívida pública⁷. Essa estratégia visava reduzir o custo do crédito e estimular a economia, o que foi possível por décadas graças à confiança dos investidores e à inflação praticamente nula.
Esse contexto facilitou o surgimento do chamado carry trade do iene, um fenômeno em que investidores internacionais tomam empréstimos em ienes com juros quase nulos e investem em ativos de maior rendimento no exterior, como os títulos do Tesouro dos EUA, da Austrália ou do Brasil⁸. Isso gerou um fluxo massivo de capitais japoneses para fora do país.
Contudo, em 2024, com o aumento da inflação doméstica e a valorização dos salários, o Banco do Japão foi forçado a mudar de rumo. Sob a liderança do novo governador Kazuo Ueda, elevou a taxa de juros para 0,25% em julho daquele ano, pondo fim à era das taxas negativas⁹. Isso causou turbulência nos mercados, com o desmonte de posições de carry trade e a repatriação de recursos.
6. Riscos Sistêmicos e Repercussões Internacionais
O Japão detém mais de 1,1 trilhão de dólares em títulos do Tesouro norte-americano, o que o torna o maior credor estrangeiro dos Estados Unidos¹⁰. Com o aumento dos rendimentos dos títulos japoneses, esses investimentos perderam atratividade. A venda em massa desses ativos pode elevar os juros americanos, prejudicando o financiamento global e impactando os mercados emergentes.
Embora seja improvável que o Japão entre em colapso de forma abrupta — como ocorreu com a Grécia — os riscos de um declínio lento e contínuo são concretos. A desvalorização do iene, o aumento gradual da inflação e a perda de poder de compra da população são efeitos visíveis de uma economia em desgaste.
7. Considerações Finais
O Japão é, hoje, uma das economias mais endividadas do mundo e enfrenta um dos colapsos demográficos mais acelerados da história moderna. A combinação desses fatores impõe desafios monumentais ao governo de Shigeru Ishiba, cuja administração se vê obrigada a lidar simultaneamente com pressões internas e repercussões internacionais.
Por mais que o Japão tenha fundamentos institucionais sólidos, uma crise fiscal prolongada pode abalar os pilares do sistema financeiro global. Como alerta o antigo ditado: se o Japão espirra, o mundo pega um resfriado — e talvez estejamos diante de algo mais grave que um resfriado: uma crise silenciosa com alcance global.
Notas de Rodapé
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FMI. World Economic Outlook, 2024.
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Ibidem.
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Declaração de Shigeru Ishiba à imprensa, Tóquio, out. 2024.
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Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar do Japão. Estatísticas Demográficas, 2024.
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National Institute of Population and Social Security Research. Population Projections for Japan, 2023.
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OECD. Economic Survey of Japan, 2023.
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Banco do Japão. Monetary Policy Statement, jul. 2024.
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BIS – Bank for International Settlements. Carry Trade and Global Financial Stability, 2020.
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Banco do Japão. Press Release, 31 jul. 2024.
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U.S. Treasury Department. Major Foreign Holders of Treasury Securities, dez. 2023.
Referências Bibliográficas
BANCO DO JAPÃO. Monetary Policy Statement. Tóquio: BOJ, jul. 2024.
BIS – BANK FOR INTERNATIONAL SETTLEMENTS. Carry Trade and Global Financial Stability. Basel: BIS, 2020.
FMI. World Economic Outlook. Washington, D.C.: International Monetary Fund, 2024.
MINISTÉRIO DA SAÚDE, TRABALHO E BEM-ESTAR DO JAPÃO. Estatísticas Demográficas Anuais. Tóquio: MHLW, 2024.
NATIONAL INSTITUTE OF POPULATION AND SOCIAL SECURITY RESEARCH. Population Projections for Japan. Tóquio: NIPSSR, 2023.
OECD. Economic Survey of Japan 2023. Paris: OECD Publishing, 2023.
TESOURO DOS ESTADOS UNIDOS. Major Foreign Holders of Treasury Securities. Washington, D.C., 2023. Disponível em: https://www.treasury.gov. Acesso em: 10 jun. 2025.
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