Introdução
O período da União das Coroas Ibéricas (1580-1640) representou um momento único na história ocidental: Espanha e Portugal, unificados sob a mesma coroa, detinham o maior império transcontinental da época. No entanto, a ausência de uma política econômica coordenada e teologicamente fundamentada para enfrentar o avanço das potências protestantes — especialmente a Holanda — abriu brechas que resultaram na perda de territórios estratégicos e no enfraquecimento da missão evangelizadora da Igreja.
Este artigo propõe uma análise contrafactual e prospectiva sobre como a criação de uma Companhia Católica Contra-Reformista, fundada nos princípios da aliança do altar com o trono, da justiça social e da missão evangelizadora, poderia ter reconfigurado não apenas o equilíbrio de poder na época, mas também o próprio conceito moderno de Estado-Mercado, conforme analisado por Philip Bobbitt (BOBBITT, 2002)¹.
1. A Base Espiritual: de Ourique à União Ibérica
A identidade política e espiritual da Península Ibérica foi forjada em batalhas como a de Ourique (1139), quando D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, entendeu sua missão real como subordinada ao serviço direto de Cristo². Esse senso de missão, já presente na Reconquista, foi transportado para o além-mar com as navegações e atingiu seu auge durante a União Ibérica.
Se houvesse existido uma Companhia Católica Contra-Reformista, ela seria o prolongamento direto dessa espiritualidade de serviço. Seus estatutos fundadores explicitariam o dever de expandir o Reino de Cristo tanto no aspecto espiritual quanto no temporal.
2. A Conexão Global: Potosí, Feira de Acapulco e o Dólar de Prata
A riqueza extraída de Potosí foi fundamental para sustentar a economia ibérica e global³. O sistema que levava a prata das montanhas bolivianas para a Ásia via a Feira de Acapulco, e de lá para o mundo, consolidou o dólar de prata como a primeira moeda verdadeiramente global (FLYNN; GIRÁLDEZ, 1995)⁴.
Uma Companhia Católica de Comércio, operando nesse contexto, teria utilizado essa infraestrutura para criar um mercado global a serviço da Cristandade, utilizando a circulação da prata como um vetor de evangelização e promoção da justiça social. Ao invés de financiar guerras dinásticas ou cobrir déficits fiscais causados por má gestão, os recursos seriam aplicados na expansão missionária e na consolidação de uma ordem social baseada na concórdia entre as classes.
3. Redefinindo o Estado-Mercado: uma leitura cristã de Bobbitt
Philip Bobbitt, ao analisar a evolução do Estado moderno, identifica o surgimento do Estado-Mercado, caracterizado por uma relação simbiótica entre o aparato estatal e as forças econômicas de mercado⁵. Na leitura tradicional, o Estado-Mercado emerge de uma evolução secularizada das instituições políticas pós-Westfália.
Contudo, se a Companhia Católica Contra-Reformista tivesse sido efetivada, a história do Estado-Mercado ganharia um viés totalmente diferente: seu nascimento estaria diretamente ligado à aliança entre altar e trono, à concórdia entre as classes e à proteção dos interesses da Cristandade. Seria um Estado-Mercado não secular, mas confessional e missionário, operando segundo o princípio do Reino Social de Cristo, como defendido mais tarde por Pio XI na encíclica Quas Primas (PIO XI, 1925)⁶.
4. A iberofera como base geopolítica e moral
A Iberofera – o conjunto de nações, culturas e territórios ligados pela herança ibérica e católica – teria se tornado o núcleo moral, espiritual e econômico desse novo modelo civilizacional. O capital moral acumulado pelas vitórias em Cristo, aqui simbolizado como Win Shares – ou "cotas de vitória" acumuladas ao longo das batalhas espirituais e materiais travadas pela Cristandade – daria a essa estrutura uma legitimidade não apenas política ou econômica, mas escatológica.
Cada vitória missionária, cada conversão, cada escola fundada, cada obra de misericórdia realizada através dos lucros da companhia, tudo isso seriam formas concretas de "dividendo espiritual", reforçando a base moral dessa nova ordem.
Conclusão
Se tivesse existido uma Companhia Católica Contra-Reformista durante a União Ibérica, o mundo teria conhecido um Estado-Mercado de inspiração cristã, enraizado na aliança do altar com o trono, na concórdia social e na defesa militante da fé. Hoje, a reconstrução desse projeto — ainda que sob formas adaptadas à realidade global contemporânea — permanece um imperativo histórico e espiritual.
A Contra-Reforma Econômica, vista sob esse prisma, não é um anacronismo nem uma utopia, mas uma necessidade civilizacional, que exige o resgate de um capital moral acumulado ao longo de séculos e que agora precisa ser aplicado com inteligência e coragem.
Notas de Rodapé
¹ BOBBITT, Philip. The Shield of Achilles: War, Peace, and the Course of History. Nova York: Alfred A. Knopf, 2002.
² MATTOSO, José. Afonso Henriques. Lisboa: Círculo de Leitores, 2007.
³ BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: América Latina Colonial. São Paulo: Edusp, 1999.
⁴ FLYNN, Dennis O.; GIRÁLDEZ, Arturo. "Born with a ‘Silver Spoon’: The Origin of World Trade in 1571." Journal of World History, v. 6, n. 2, 1995, p. 201-221.
⁵ BOBBITT, Philip. The Shield of Achilles, op. cit.
⁶ PIO XI. Quas Primas. Vaticano, 1925.
Referências Bibliográficas
BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: América Latina Colonial. São Paulo: Edusp, 1999.
BOBBITT, Philip. The Shield of Achilles: War, Peace, and the Course of History. Nova York: Alfred A. Knopf, 2002.
FLYNN, Dennis O.; GIRÁLDEZ, Arturo. Born with a ‘Silver Spoon’: The Origin of World Trade in 1571. Journal of World History, v. 6, n. 2, 1995, p. 201-221.
LEÃO XIII. Rerum Novarum. Petrópolis: Vozes, 1982.
MATTOSO, José. Afonso Henriques. Lisboa: Círculo de Leitores, 2007.
PIO XI. Quas Primas. Vaticano, 1925.
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