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segunda-feira, 30 de junho de 2025

Entre Aves, Pontes e Redes: a teopolítica polonesa como continuação do Milagre de Ourique

Introdução

Desde Platão até os dias atuais, muitas tentativas foram feitas para definir o homem. Uma das mais célebres — e irônicas — definições do filósofo grego classificava o homem como um “bípede sem penas”¹. A resposta cômica dos discípulos de Diógenes ao depenar um frango nos mostra o risco das definições meramente naturais. No entanto, ao ser redimido em Cristo, o homem transcende essa natureza cômica ou zoológica. Ele se torna uma criatura que vive ao sabor do Espírito, como uma ave verdadeiramente livre: livre em Cristo, por Cristo e para Cristo.

Essa liberdade o leva a peregrinar entre terras, e, ao fazê-lo, ele carrega consigo não apenas sementes — mas símbolos. Esses símbolos não são plantas por si, mas indícios vivos da terra de onde vem. E ao estabelecer-se numa nova terra, o homem em missão costura o conhecido ao desconhecido, revelando o Todo de Deus aos nativos que ainda não O conheciam. É assim que se pesca homens. É assim que se forma uma teopolítica.

1. O homem como ave livre: a liberdade no Espírito

Em seu diálogo com Nicodemos, Jesus afirma: *“O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim é todo aquele que é nascido do Espírito”*². Essa imagem remete ao voo da ave, que, solta nos ares, não é escrava do solo nem da gaiola. A verdadeira liberdade, portanto, não está em decidir por si mesmo, mas em seguir o sopro do Espírito, no seio da obediência amorosa ao Verbo.

Quando o homem é convertido, ele já não vive para si, mas para Aquele que o salvou. Seu movimento no mundo é como o de uma ave missionária, levando símbolos que apontam para o Reino. Esses símbolos não se reduzem à cultura nem à etnografia. Eles são os traços visíveis de um Todo invisível — marcas da presença de Deus numa cultura que ainda não o reconhecia.

2. A Construção de Pontes: Missão e Ressignificação

Ao levar os símbolos de sua terra natal para outra, o homem em missão não simplesmente coloniza — ele constrói pontes. Cada símbolo inserido numa nova realidade é uma semente que precisa ser ressignificada. Isso requer sabedoria, paciência e caridade. O apóstolo Paulo, ao pregar aos gregos, não começou pela Lei mosaica, mas pelo altar “ao deus desconhecido” (At 17,23). A ponte foi lançada.

Assim, o homem em missão une terras diversas num mesmo lar em Cristo. Ele é, como disse Szondi, um construtor de pontes³. Costura símbolos antigos com realidades novas, numa tapeçaria espiritual que converte o estrangeiro sem destruir sua identidade, pois a ele é oferecida a identidade mais profunda: ser filho de Deus.

3. Pesca de Homens e a Rede Teopolítica

Jesus chamou pescadores e os transformou em apóstolos. Disse-lhes: *“Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens”*⁴. A pesca, aqui, não é captura, mas salvação. Os pescados são aqueles que entram na rede da misericórdia, da verdade e da liberdade. Essa rede apostólica, ao se expandir no tempo e no espaço, se torna também uma rede social — não no sentido digital, mas espiritual, cultural e político.

A verdadeira teopolítica nasce dessa rede. Não é o domínio da fé sobre o Estado pela força, mas o florescimento de uma ordem em que Cristo reina nos corações, nas instituições, nas leis e nos símbolos. Uma teopolítica é a ordenação do mundo social ao Reino de Deus, desde já.

4. O Mar Polonês e A Profecia da Misericórdia

Quando Cristo apareceu à Santa Faustina Kowalska, não lhe falou de impérios nem de revoluções, mas da Divina Misericórdia como um oceano insondável. Referiu-se ao povo polonês como aquele por meio do qual a faísca sairia para preparar o mundo para a Sua vinda⁵. A imagem do “mar polonês” é mais do que geopolítica: é soteriológica. A rede que pesca os homens agora se expande sobre o leste europeu como cumprimento profético da missão católica.

A Polônia, terra de mártires e santos, tornou-se o campo de costura entre Oriente e Ocidente, entre tradição e renovação, entre justiça e misericórdia. Por isso, a teopolítica polonesa — marcada por João Paulo II, por Santa Faustina, por Nossa Senhora de Częstochowa — é uma das expressões mais puras da missão iniciada em Ourique. 

5. Ourique: o começo de tudo

O Milagre de Ourique (1139) não foi apenas uma vitória militar de Dom Afonso Henriques. Foi o sinal do estabelecimento do Reinado Social de Cristo em terra lusitana. Cristo apareceu, coroou o rei e estabeleceu uma missão: que o Reino fosse expandido não por conquista, mas por santidade. Foi o princípio de uma história em que Portugal seria instrumento de evangelização do mundo — do Brasil à Índia, da África à Polônia.

A teopolítica de Ourique não é monopólio português, mas um dom católico. E ao alcançar terras como a Polônia, ela floresce novamente. Assim, o mar da Misericórdia anunciado à Santa Kowalska é o mesmo mar onde os símbolos costurados pelo homem livre em Cristo se tornam sementes de eternidade.

Conclusão

A imagem do homem como ave, como ponte e como pescador reúne três dimensões da missão cristã: liberdade, comunhão e apostolado. Quando essas dimensões se encontram, nasce a verdadeira teopolítica — aquela que não teme cruzar fronteiras, porque leva consigo o Reino. A Polônia, nesse sentido, não é apenas uma nação. É um campo espiritual onde a rede de Cristo se estende — e onde a profecia de Ourique se renova.

Notas de Rodapé

  1. PLATÃO. Teeteto. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores).

  2. JOÃO. Evangelho segundo São João. 3:8.

  3. SZONDI, Leopold. Escritos sobre Destino e Psicoterapia. São Paulo: Escuta, 2011.

  4. MATEUS. Evangelho segundo São Mateus. 4:19.

  5. KOWALSKA, Santa Faustina. Diário: A Misericórdia Divina na Minha Alma. Petrópolis: Vozes, 2006.

Bibliografia Comentada

  • PLATÃO. Teeteto. Esse diálogo filosófico discute a natureza do conhecimento. A definição do homem como “bípede sem penas” aparece em tom irônico, mas permite reinterpretar a imagem a partir da teologia cristã.

  • SZONDI, Leopold. Escritos sobre Destino e Psicoterapia. O psicólogo húngaro trabalha com a ideia de destino pessoal e da construção de pontes internas e sociais. Sua ideia de “ponte” é aqui transfigurada numa chave teológica.

  • KOWALSKA, Santa Faustina. Diário: A Misericórdia Divina na Minha Alma. Obra central da mística polonesa, contém as revelações de Jesus sobre a Divina Misericórdia e a profecia da faísca polonesa.

  • TOMÁS DE AQUINO. De Regno ad Regem Cypri. Nessa obra, o Doutor Angélico trata da relação entre governo e fé cristã, fornecendo base doutrinal à ideia de teopolítica como serviço à ordem justa.

  • PIO XI. Quas Primas. Encíclica que institui a Festa de Cristo Rei e fundamenta o Reinado Social de Cristo como resposta às ideologias secularistas.

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