Introdução
Vivemos tempos em que o mundo parece cair cada vez mais sob o domínio de uma ordem anticristã, estruturada sob ideologias que relativizam a verdade, dissolvem os vínculos naturais e profanam os fundamentos espirituais da civilização. Esta configuração, muitas vezes identificada como Nova Ordem Mundial, pode ser compreendida, à luz das Escrituras, como uma nova Babilônia — um sistema global que sequestra os homens da verdade divina e os enreda em cadeias invisíveis de mentira, servidão e vaidade1.
Nessa conjuntura, a missão dos cristãos não é de natureza puramente política ou ativista, mas de fidelidade profunda ao Cristo verdadeiro, que se manifesta, em primeiro lugar, por meio da estudiosidade e da exemplaridade. Estudar nos méritos de Cristo e viver conforme esse saber é, para muitos, o único evangelho ainda acessível.
Estudiosidade: a ordenação do intelecto à verdade
A estudiosidade é uma virtude que ordena o desejo de conhecer à reta razão e à finalidade última da alma: Deus. Segundo São Tomás de Aquino, ela é parte potencial da temperança2, enquanto regula os apetites do intelecto e os preserva do excesso, caracterizado pela curiosidade vã.
Essa distinção já estava presente em São Boaventura, que via na curiositas um vício que desvia o olhar do homem das coisas divinas para as vaidades do mundo. A curiosidade busca o saber por vanglória, novidade ou prazer desordenado; a estudiosidade, ao contrário, busca o saber como meio para a contemplação, a edificação e o serviço a Deus3.
“A ciência sem consciência é a ruína da alma”, adverte Boaventura4, apontando que o saber separado da santidade de vida é, no fundo, uma forma de soberba.
A verdadeira estudiosidade, portanto, é humilde e ordenada. Busca conhecer para amar melhor. No cristianismo, conhecer é sempre o princípio de um movimento moral e espiritual. O saber que não conduz à caridade é vaidade; o saber que conduz à sabedoria é serviço e luz.
Num mundo que valoriza a distração, o superficial e o utilitarismo, a estudiosidade cristã se torna um ato de resistência profética. E é exatamente essa resistência silenciosa que prepara o terreno para a exemplaridade.
Exemplaridade: a vida tornada Evangelho
A exemplaridade é a forma mais poderosa de evangelização em tempos de cativeiro. Quando o acesso aos meios ordinários da fé é dificultado — seja por perseguição, censura ou desinteresse generalizado — a vida do cristão torna-se o único Evangelho legível aos olhos do mundo.
Como dizia São Francisco de Assis: “Pregue o Evangelho em todo tempo. Se necessário, use palavras.”5
Isso é especialmente verdadeiro em tempos de Babilônia espiritual, quando a mentira é institucionalizada e a fé é marginalizada. O exemplo de uma vida justa, piedosa, ordenada, honesta, sacramental, fala mais alto que discursos ou panfletos. Esse exemplo só é possível se for sustentado por uma formação interior sólida — razão pela qual a exemplaridade depende da estudiosidade.
“Se alguém quer ser meu discípulo, negue-se a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me.” (Lc 9,23)
A exemplaridade, nesse contexto, não é exibicionismo moral, mas martírio silencioso. É tornar-se espelho de Cristo na vida cotidiana, no lar, no trabalho, no silêncio do sofrimento aceito com humildade, na fidelidade aos sacramentos mesmo quando ridicularizados.
Um evangelho vivo em tempos de cativeiro
A analogia bíblica com o exílio da Babilônia é profundamente instrutiva. O profeta Daniel, mesmo em terra estrangeira, permaneceu estudioso da Lei e exemplar em sua conduta, chegando a ser reconhecido por reis pagãos como homem íntegro e sábio (Dn 6,4-5). Ele não apenas estudava os preceitos divinos, mas os vivia — e isso provocava escândalo e admiração.
Também hoje, o cristão deve se comportar como exilado nesta terra (Hb 13,14), fiel às promessas eternas, mas sem pactuar com os ídolos da modernidade. Sua vida deve ser um testemunho contra a idolatria do relativismo, do hedonismo e do materialismo. Em meio ao cativeiro, sua exemplaridade pode salvar outros.
Como lembra Viktor Frankl, o homem “sobrevive a tudo, menos à falta de sentido”6. E o único sentido verdadeiro é Cristo. Ser sinal vivo desse sentido, por meio do exemplo e do saber, é o maior bem que um homem pode fazer ao próximo.
Conclusão: um chamado ao apostolado silencioso
A relação entre estudiosidade e exemplaridade, vivida nos méritos do verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, é o que torna a vida cristã eficaz em tempos de silêncio forçado e escuridão espiritual. Num tempo em que poucos leem a Escritura, mas muitos observam vidas alheias, ser exemplo é ser apóstolo. E estudar para conformar-se à Verdade é tornar-se discípulo.
“Ninguém acende uma lâmpada e a coloca debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, e ela alumia todos os que estão na casa.” (Mt 5,15)
A missão é clara: ser essa lâmpada, estudando e vivendo de tal modo que o mundo, ainda que em cativeiro, possa ver e crer. Para muitos, essa será a única forma de acesso ao Evangelho — um evangelho vivo, silencioso e eficaz.
Bibliografia
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Tradução de Raimundo Vier. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
BENTO XVI. A nova ordem mundial: uma ameaça à liberdade? In: L'Osservatore Romano, 2011.
BOAVENTURA, São. Itinerarium mentis in Deum. In: Obras Completas. Petrópolis: Vozes, 1992.
BOAVENTURA, São. Breviloquium. In: Obras Completas. Petrópolis: Vozes, 1992.
FRANCISCO DE ASSIS, São. Escritos e biografias. Tradução de Frei Fidêncio Vanboemmel. Petrópolis: Vozes, 2005.
FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média: do século IX ao fim do século XIV. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
SAGRADA BÍBLIA. Tradução da CNBB. Edição de referência. São Paulo: Paulus, 2002.
Notas de Rodapé
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Cf. BENTO XVI. A Nova Ordem Mundial: uma ameaça à liberdade? In: L'Osservatore Romano, 2011. ↩
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AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. II-II, q. 166, a. 1. São Paulo: Edições Loyola, 2001. ↩
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BOAVENTURA, São. Itinerarium mentis in Deum. In: Obras Completas. Petrópolis: Vozes, 1992. ↩
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BOAVENTURA, São. Breviloquium. In: Obras Completas. Petrópolis: Vozes, 1992. Cf. também: GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ↩
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Atribuído a São Francisco de Assis. Cf. BOAVENTURA, São. Legenda Maior, cap. XI. ↩
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FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Vozes, Petrópolis, 2005. ↩
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