Introdução
Ao refletirmos sobre a trajetória humana sob o prisma da história pessoal e da liberdade, somos levados a reconhecer duas categorias fundamentais de currículo: o currículo de vida, entendido como o conjunto de fatos consumados de uma pessoa que já viveu, e o currículo histórico em construção, próprio da pessoa viva que ainda lida com suas circunstâncias. Este artigo pretende estabelecer os fundamentos para aquilo que chamaremos de filosofia dos currículos, abordando como o manejo das circunstâncias transforma o sujeito de um mero sobrevivente em um verdadeiro agente histórico.
I. O currículo de vida: um documento fechado
O currículo de vida, tal como o conceituamos aqui, é um dado histórico encerrado. Trata-se de uma biografia já concluída, onde os fatos não podem mais ser alterados, as escolhas não podem mais ser revistas e o enredo existencial está selado.
Esse currículo é o que fica para os biógrafos, os historiadores, os críticos e os memorialistas. Ele será lido e interpretado de fora para dentro, muitas vezes sem que o intérprete conheça as lutas internas, os dilemas morais ou as estratégias silenciosas que marcaram cada etapa da vida daquele indivíduo.
O currículo de vida é o documento que pertence aos mortos.
II. O currículo histórico em construção: uma narrativa aberta
Por outro lado, o currículo histórico de uma pessoa viva é um texto inacabado, sujeito à contínua revisão, correção e, sobretudo, a novas escolhas. Ele é fruto de uma relação dialética entre o indivíduo e suas circunstâncias.
Aqui ecoamos Ortega y Gasset, que sintetizou essa realidade com sua máxima: "Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim."
Esse currículo é fluido. Ele é reescrito diariamente por meio de decisões, atitudes, reposicionamentos estratégicos e, acima de tudo, pela capacidade do sujeito de manejar as circunstâncias ao seu favor.
III. Manejo das Circunstâncias: a reabsorção estratégica
A vida de uma pessoa se mede não apenas pelos recursos de que ela dispõe, mas pela sua capacidade de reabsorver suas circunstâncias de modo que o cenário a favoreça.
Essa reabsorção não significa negar a realidade, mas incorporá-la como matéria-prima da construção de si mesmo. As adversidades, longe de serem um obstáculo intransponível, tornam-se desafios que estimulam a inteligência prática e o senso de oportunidade.
Uma pessoa que compreende isso passa a atuar de forma semelhante a um estrategista: gera novos contextos, transforma derrotas em lições, constrói alianças, e sobretudo, trabalha incessantemente para que seu currículo histórico em construção ganhe densidade, coerência e força narrativa.
IV. Liberdade, responsabilidade e urgência existencial
O reconhecimento dessa distinção entre os dois tipos de currículo gera um senso profundo de responsabilidade.
O vivo sabe que ainda pode:
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Reescrever sua história.
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Corrigir erros.
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Fortalecer virtudes.
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Superar limitações.
Mas esse mesmo saber também carrega um senso de urgência. Cada decisão tomada hoje, cada renúncia e cada afirmação de vontade, estão compondo o documento que um dia se tornará seu currículo de vida – aquele que não mais poderá ser modificado.
V. A filosofia dos currículos: uma ética da construção histórica
A filosofia dos currículos, portanto, é uma ética da construção histórica pessoal.
Ela nos lembra que:
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Ninguém é escravo definitivo das circunstâncias.
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Toda vida é, em certa medida, uma obra de arte em progresso.
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O manejo inteligente e virtuoso das circunstâncias é um dever moral.
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O currículo final, que deixaremos como legado, depende das escolhas feitas agora.
Essa filosofia também nos salva de dois erros comuns:
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O fatalismo covarde, que paralisa o indivíduo e o transforma em vítima passiva da história.
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A arrogância voluntarista, que ignora a força das circunstâncias como se a vontade individual fosse soberana sobre tudo.
A verdadeira sabedoria reside em reconhecer os limites, agir dentro deles com inteligência e coragem, e transformar a margem de liberdade que nos resta em território conquistado para a verdade, a justiça e a beleza.
Conclusão
Enquanto respiramos, somos responsáveis pelo nosso currículo histórico em construção. Um dia, este documento será fechado, e o que ficará para trás será o nosso currículo de vida — objeto de julgamento não apenas dos homens, mas também de Deus.
Por isso, viver com consciência histórica é viver com humildade, senso de missão e urgência moral.
Notas de Rodapé
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Ortega y Gasset, José. Meditaciones del Quijote. Revista de Occidente, 1914.
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Frankl, Viktor E. Em Busca de Sentido. Vozes, 2008.
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Collingwood, R.G. The Idea of History. Oxford University Press, 1946.
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Dávila, Nicolás Gómez. Escolios a un Texto Implícito. Villegas Editores, 2001.
Bibliografia Complementar
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Sartre, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Vozes, 2000.
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Marías, Julián. Historia de la Filosofía. Alianza Editorial, 1983.
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Agamben, Giorgio. O Que É o Contemporâneo? N-1 Edições, 2009.
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