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sábado, 14 de junho de 2025

Filosofia dos Currículos: entre o currículo de vida e o currículo histórico em construção

Introdução

Ao refletirmos sobre a trajetória humana sob o prisma da história pessoal e da liberdade, somos levados a reconhecer duas categorias fundamentais de currículo: o currículo de vida, entendido como o conjunto de fatos consumados de uma pessoa que já viveu, e o currículo histórico em construção, próprio da pessoa viva que ainda lida com suas circunstâncias. Este artigo pretende estabelecer os fundamentos para aquilo que chamaremos de filosofia dos currículos, abordando como o manejo das circunstâncias transforma o sujeito de um mero sobrevivente em um verdadeiro agente histórico.

I. O currículo de vida: um documento fechado

O currículo de vida, tal como o conceituamos aqui, é um dado histórico encerrado. Trata-se de uma biografia já concluída, onde os fatos não podem mais ser alterados, as escolhas não podem mais ser revistas e o enredo existencial está selado.

Esse currículo é o que fica para os biógrafos, os historiadores, os críticos e os memorialistas. Ele será lido e interpretado de fora para dentro, muitas vezes sem que o intérprete conheça as lutas internas, os dilemas morais ou as estratégias silenciosas que marcaram cada etapa da vida daquele indivíduo.

O currículo de vida é o documento que pertence aos mortos.

II. O currículo histórico em construção: uma narrativa aberta

Por outro lado, o currículo histórico de uma pessoa viva é um texto inacabado, sujeito à contínua revisão, correção e, sobretudo, a novas escolhas. Ele é fruto de uma relação dialética entre o indivíduo e suas circunstâncias.

Aqui ecoamos Ortega y Gasset, que sintetizou essa realidade com sua máxima: "Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim."

Esse currículo é fluido. Ele é reescrito diariamente por meio de decisões, atitudes, reposicionamentos estratégicos e, acima de tudo, pela capacidade do sujeito de manejar as circunstâncias ao seu favor.

III. Manejo das Circunstâncias: a reabsorção estratégica

A vida de uma pessoa se mede não apenas pelos recursos de que ela dispõe, mas pela sua capacidade de reabsorver suas circunstâncias de modo que o cenário a favoreça.

Essa reabsorção não significa negar a realidade, mas incorporá-la como matéria-prima da construção de si mesmo. As adversidades, longe de serem um obstáculo intransponível, tornam-se desafios que estimulam a inteligência prática e o senso de oportunidade.

Uma pessoa que compreende isso passa a atuar de forma semelhante a um estrategista: gera novos contextos, transforma derrotas em lições, constrói alianças, e sobretudo, trabalha incessantemente para que seu currículo histórico em construção ganhe densidade, coerência e força narrativa.

IV. Liberdade, responsabilidade e urgência existencial

O reconhecimento dessa distinção entre os dois tipos de currículo gera um senso profundo de responsabilidade.

O vivo sabe que ainda pode:

  • Reescrever sua história.

  • Corrigir erros.

  • Fortalecer virtudes.

  • Superar limitações.

Mas esse mesmo saber também carrega um senso de urgência. Cada decisão tomada hoje, cada renúncia e cada afirmação de vontade, estão compondo o documento que um dia se tornará seu currículo de vida – aquele que não mais poderá ser modificado.

V. A filosofia dos currículos: uma ética da construção histórica

A filosofia dos currículos, portanto, é uma ética da construção histórica pessoal.

Ela nos lembra que:

  1. Ninguém é escravo definitivo das circunstâncias.

  2. Toda vida é, em certa medida, uma obra de arte em progresso.

  3. O manejo inteligente e virtuoso das circunstâncias é um dever moral.

  4. O currículo final, que deixaremos como legado, depende das escolhas feitas agora.

Essa filosofia também nos salva de dois erros comuns:

  • O fatalismo covarde, que paralisa o indivíduo e o transforma em vítima passiva da história.

  • A arrogância voluntarista, que ignora a força das circunstâncias como se a vontade individual fosse soberana sobre tudo.

A verdadeira sabedoria reside em reconhecer os limites, agir dentro deles com inteligência e coragem, e transformar a margem de liberdade que nos resta em território conquistado para a verdade, a justiça e a beleza.

Conclusão

Enquanto respiramos, somos responsáveis pelo nosso currículo histórico em construção. Um dia, este documento será fechado, e o que ficará para trás será o nosso currículo de vida — objeto de julgamento não apenas dos homens, mas também de Deus.

Por isso, viver com consciência histórica é viver com humildade, senso de missão e urgência moral.

Notas de Rodapé

  1. Ortega y Gasset, José. Meditaciones del Quijote. Revista de Occidente, 1914.

  2. Frankl, Viktor E. Em Busca de Sentido. Vozes, 2008.

  3. Collingwood, R.G. The Idea of History. Oxford University Press, 1946.

  4. Dávila, Nicolás Gómez. Escolios a un Texto Implícito. Villegas Editores, 2001.

Bibliografia Complementar

  • Sartre, Jean-Paul. O Ser e o Nada. Vozes, 2000.

  • Marías, Julián. Historia de la Filosofía. Alianza Editorial, 1983.

  • Agamben, Giorgio. O Que É o Contemporâneo? N-1 Edições, 2009.

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