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segunda-feira, 30 de junho de 2025

A banalização do sistema penal: quando a prisão vira escola do crime

 Em um país onde há indivíduos com mais de duzentas passagens por delegacias, somos obrigados a reconhecer que o sistema penal perdeu sua força simbólica e punitiva. A prisão deixou de ser exceção, tornando-se uma rotina. Para esses sujeitos, a ida ao presídio torna-se algo tão trivial quanto ir à escola. E o mais grave: enquanto a escola deveria formar cidadãos, o presídio forma criminosos — ou, como bem já se diz popularmente, transformou-se em “escola do crime”¹.

1. A naturalização da marginalidade

A reincidência crônica, quando não enfrentada por um sistema penal justo e efetivo, conduz à formação de um habitus² delinquente. O sujeito não teme mais a autoridade do Estado; ao contrário, adapta-se a ela. A experiência carcerária, em vez de ser encarada como castigo, é vivida como um rito de passagem ou uma etapa da vida.

A primeira detenção causa medo, a segunda, desconforto. A centésima se torna parte da rotina. O crime, portanto, se banaliza, e o criminoso com ele. Como aponta Michel Foucault, “a prisão funciona como uma máquina para transformar delinquentes ocasionais em delinquentes profissionais”³.

2. O presídio como espaço de aperfeiçoamento criminal

A ideia de que a prisão se tornou escola do crime não é nova, mas ganha contornos dramáticos quando confrontada com dados de reincidência e faccionalização do sistema penitenciário. O cárcere, idealmente um espaço de reeducação, na prática se torna um campo de recrutamento e treinamento de facções.

Segundo Zaffaroni, “as prisões reproduzem a criminalidade, selecionam os mais pobres e consolidam a marginalidade como uma subcultura”⁴. Aprendem-se táticas, forjam-se alianças, e a cadeia passa a ser espaço de ascensão na hierarquia criminal, especialmente quando a omissão estatal permite que o crime organizado se enraíze em seu interior.

3. A falência das finalidades da pena

A pena criminal, de acordo com a teoria clássica, possui três funções: retributiva, preventiva (geral e especial) e ressocializadora⁵. No entanto, quando o criminoso reincidente não encontra no cárcere qualquer tipo de oposição real à sua conduta, todas essas funções se anulam:

  • A retribuição perde valor, pois o castigo se torna rotina;

  • A prevenção geral falha quando a punição é incerta ou inócua;

  • A ressocialização se inviabiliza num ambiente onde imperam o ócio, a violência e a criminalidade institucionalizada.

O sistema entra em colapso. A prisão não corrige, não intimida e não reintegra — apenas segrega por tempo determinado, preparando o retorno do infrator à sociedade com mais rancor, mais contatos e mais habilidades ilícitas. 

4. Desumanização e Embrutecimento Coletivo

Essa banalização do crime e da pena afeta toda a sociedade. O cidadão de bem se sente desprotegido; o policial se vê frustrado ao prender sempre os mesmos indivíduos; o juiz se torna descrente da eficácia de suas sentenças; e o político se aproveita do caos para propor medidas oportunistas que só agravam o problema.

Cria-se um ambiente de embrutecimento coletivo, no qual a justiça perde legitimidade e a violência se torna, aos poucos, socialmente tolerada. Como observa Hannah Arendt, “o maior mal é aquele que se instala quando as pessoas deixam de pensar sobre o que fazem”⁶ — e esse mal cresce quando o crime é aceito como parte do cotidiano.

5. A nacionidade como antídoto

Essa questão transcende o campo penal e adentra o domínio da nacionidade. Um povo que naturaliza o crime e convive passivamente com a impunidade está em processo de dissolução moral. A pátria não é apenas um território: é uma comunhão moral fundada em justiça, ordem e verdade.

Como já afirmava Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum, a sociedade justa exige a combinação entre o trabalho honesto, a autoridade legítima e a santificação das relações sociais⁷. Um Estado forte é necessário, mas um povo virtuoso é indispensável.

Combater a banalização do sistema penal exige mais do que reformas legislativas: exige reconstrução espiritual, cultural e econômica, na qual o trabalho e a educação sejam instrumentos de redenção, e a autoridade pública, expressão da ordem moral superior.

Considerações Finais

A repetição banal do crime e da prisão não é apenas sinal de falência institucional, mas de colapso civilizacional. Um país que tolera isso por tempo demais perde o senso de justiça, enfraquece o contrato social e abre espaço para formas autoritárias ou criminosas de organização da vida.

A reconstrução nacional exige, antes de tudo, uma reafirmação da autoridade — não apenas do Estado, mas da lei natural, da moral objetiva e da verdade como fundamento da liberdade. O crime deve voltar a ser exceção, não rotina. E a prisão, um lugar de expiação, não de promoção.

Notas

  1. Ver expressão popular consagrada no jargão policial e jornalístico: “a cadeia virou escola do crime”, com ampla difusão em programas como Brasil Urgente e Cidade Alerta, refletindo sentimento comum da população.

  2. Cf. BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2003. O conceito de habitus se refere a esquemas internalizados de comportamento, adquiridos pela repetição social.

  3. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 231.

  4. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 117.

  5. Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2020. v. 1, p. 56-61.

  6. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 287.

  7. LEÃO XIII. Rerum Novarum. Vaticano, 1891. Tradução disponível na edição oficial da CNBB: Doutrina Social da Igreja: textos básicos. São Paulo: Paulinas, 2008.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. v. 1.

BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2003.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

LEÃO XIII. Rerum Novarum. In: Doutrina Social da Igreja: textos básicos. São Paulo: Paulinas, 2008.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

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