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terça-feira, 24 de junho de 2025

D. Maria I e A Contra-Reforma Econômica: prudência, bem comum e resistência cristã à Revolução Industrial

Introdução

A memória histórica de D. Maria I de Portugal costuma ser envolta em reducionismos. A rainha, que reinou de 1777 a 1816, foi frequentemente rotulada de "louca", vítima de preconceitos anticatólicos e de leituras anacrônicas de sua trajetória política. Porém, ao analisar sua gestão econômica, sobretudo sua resistência à industrialização das colônias, especialmente do Brasil, percebemos que D. Maria I protagonizou um verdadeiro ensaio de Contra-Reforma Econômica, em plena aurora da Primeira Revolução Industrial.

Sua decisão de impedir a instalação de fábricas nos territórios ultramarinos foi mais que uma escolha econômica ou uma política mercantilista tradicional: foi um ato de prudência cristã, profundamente enraizado nos princípios da tradição católica, visando a defesa do bem comum e a preservação da dignidade humana, num contexto em que ainda não existia um corpo doutrinário como a futura Rerum Novarum (1891).

Parte I – O contexto histórico: A Revolução Industrial e A Nova Ordem Econômica

A Primeira Revolução Industrial, nascida na Inglaterra ao final do século XVIII, alterou radicalmente o modo de produção, trabalho e organização social. As novas tecnologias, como a máquina a vapor, revolucionaram os meios de produção, mas trouxeram consigo uma grave crise social:

  • Crescimento descontrolado das cidades industriais.

  • Proletarização em massa.

  • Trabalho infantil.

  • Jornadas desumanas.

  • Degradação moral nas classes operárias.

O liberalismo econômico, emergente no contexto iluminista, via o progresso técnico como um bem absoluto, divorciado de qualquer consideração ética ou moral. O lucro tornou-se critério de sucesso, e a dignidade humana foi relegada a segundo plano.

Parte II – A escolha de D. Maria I: prudência, piedade e defesa social

Diante desse cenário internacional, D. Maria I, formada pela cultura da Contra-Reforma e orientada por uma piedade profundamente católica, tomou a decisão de proibir a instalação de fábricas nas colônias, incluindo o Brasil.

Longe de ser um simples reflexo de protecionismo econômico, essa política expressava uma compreensão intuitiva, mas profundamente sensata, dos seguintes riscos:

  1. Desorganização das estruturas sociais tradicionais.

  2. Proletarização precoce e sem salvaguardas jurídicas adequadas.

  3. Importação de um modelo de trabalho desumano, com forte potencial de gerar conflitos sociais irreparáveis.

A ausência de um arcabouço doutrinário como a Doutrina Social da Igreja, que só surgiria décadas depois, fazia de sua decisão um ato de prudência extraordinária, baseada na tradição moral e na experiência da Igreja como Mestra da humanidade.

Parte III – A virtude da prudência Segundo Santo Tomás de Aquino

Para entender a profundidade dessa escolha, é preciso recorrer à teologia moral.

Segundo Santo Tomás de Aquino, a prudência (prudentia) é a virtude que governa todas as demais virtudes práticas, pois é por ela que o governante discerne, entre os meios disponíveis, aqueles mais adequados para alcançar o bem comum.

"É próprio da prudência dirigir as outras virtudes morais, não impondo-lhes a sua própria forma, mas determinando-lhes a medida justa de cada ação."
(Suma Teológica, II-II, q. 47, a. 8)

No caso específico de D. Maria I, sua prudência política consistiu em:

  • Reconhecer os limites da estrutura social de seu povo.

  • Antever as consequências negativas de uma industrialização prematura.

  • Recusar o falso dogma da modernidade de que toda inovação técnica é um bem.

Ela preferiu conservar o que era moralmente conveniente e socialmente sustentável, mesmo sob o custo político de ser incompreendida.

Parte IV – O bem comum: critério supremo da ação política cristã

Ainda segundo a filosofia tomista, o fim da política é o bem comum, não o crescimento econômico em si.

O bem comum inclui:

  • A ordem e a paz social.

  • A justiça distributiva.

  • A promoção da virtude nos cidadãos.

  • A garantia das condições materiais mínimas para uma vida digna.

D. Maria I agiu como uma verdadeira ministra da Providência, zelando para que as condições de vida em seus territórios permanecessem ordenadas segundo os critérios da justiça natural e da caridade social.

Ela viu, com clareza moral, que a introdução de fábricas sem as devidas salvaguardas sociais seria um atentado contra o bem comum, algo incompatível com sua missão de soberana cristã.

Parte V – O que acontece quando falta prudência? Uma comparação com a Inglaterra

Enquanto D. Maria I resistia ao modelo industrial sem freios, a Inglaterra abraçava com entusiasmo a ideologia do progresso técnico, produzindo uma série de efeitos devastadores:

  • Formação de um proletariado miserável.

  • Urbanização caótica.

  • Violência social e aumento da criminalidade.

  • Abandono das práticas religiosas entre os operários.

Autores como Charles Dickens e Friedrich Engels documentaram essas tragédias com detalhes. Já em Portugal e no Brasil, a ordem social permaneceu mais estável e menos conflituosa até meados do século XIX, graças, em grande parte, à política de contenção industrial promovida por D. Maria I.

Parte VI – Antecipação da Doutrina Social da Igreja

A Encíclica Rerum Novarum (1891) de Leão XIII marcaria, no fim do século XIX, o início de uma reflexão doutrinária sólida por parte da Igreja sobre os problemas sociais modernos, propondo:

  • O direito dos trabalhadores.

  • A função social da propriedade.

  • A intervenção moderada do Estado na economia.

  • O dever de justiça social por parte dos empregadores.

D. Maria I, ainda que sem esse corpo doutrinário por escrito, praticou, na sua política econômica, os mesmos princípios de justiça, prudência e cuidado com os pobres que depois seriam formalizados pelo Magistério.

Ela foi, portanto, uma precursora da Doutrina Social da Igreja na prática, antes que ela existisse na teoria.

Conclusão: de "louca" aos olhos do mundo à rainha prudente aos olhos de Cristo

A posteridade secular pode continuar a chamá-la de "louca", mas para aqueles que analisam a história com os olhos da justiça e da caridade cristã, D. Maria I foi uma soberana exemplar, que, nos méritos de Cristo, protegeu seu povo contra os enganos do falso progresso.

Sua fidelidade ao bem comum, sua prudência política e sua piedade pessoal a colocam ao lado de outros grandes governantes cristãos que souberam resistir às modas ideológicas de seu tempo para permanecer fiéis ao serviço da verdade e da justiça.

Diante de um mundo que idolatra a inovação sem critério, a figura de D. Maria I nos ensina que nem toda novidade é um bem, e que conservar o que é moralmente conveniente é, muitas vezes, o ato mais revolucionário que um cristão pode realizar.

Bibliografia e Referências:

  1. Tomás de Aquino. Suma Teológica, II-II, Questões 47-56 (Tratado da Prudência).

  2. Leão XIII. Rerum Novarum. Roma: Vaticano, 1891.

  3. Hobsbawm, Eric. A Era das Revoluções: 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2013.

  4. Boxer, Charles. O Império Marítimo Português: 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 1991.

  5. Russell-Wood, A.J.R. The Portuguese Empire, 1415-1808: A World on the Move. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1998.

  6. Dickens, Charles. Hard Times. Londres: Bradbury & Evans, 1854.

  7. Engels, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Leipzig: 1845.

  8. Pieper, Josef. As Virtudes Fundamentais. São Paulo: Loyola, 2001.

  9. Burke, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. Lisboa: Gradiva, 2007.

  10. Belloc, Hilaire. The Servile State. Londres: T.N. Foulis, 1912.

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