Introdução
A memória histórica de D. Maria I de Portugal costuma ser envolta em reducionismos. A rainha, que reinou de 1777 a 1816, foi frequentemente rotulada de "louca", vítima de preconceitos anticatólicos e de leituras anacrônicas de sua trajetória política. Porém, ao analisar sua gestão econômica, sobretudo sua resistência à industrialização das colônias, especialmente do Brasil, percebemos que D. Maria I protagonizou um verdadeiro ensaio de Contra-Reforma Econômica, em plena aurora da Primeira Revolução Industrial.
Sua decisão de impedir a instalação de fábricas nos territórios ultramarinos foi mais que uma escolha econômica ou uma política mercantilista tradicional: foi um ato de prudência cristã, profundamente enraizado nos princípios da tradição católica, visando a defesa do bem comum e a preservação da dignidade humana, num contexto em que ainda não existia um corpo doutrinário como a futura Rerum Novarum (1891).
Parte I – O contexto histórico: A Revolução Industrial e A Nova Ordem Econômica
A Primeira Revolução Industrial, nascida na Inglaterra ao final do século XVIII, alterou radicalmente o modo de produção, trabalho e organização social. As novas tecnologias, como a máquina a vapor, revolucionaram os meios de produção, mas trouxeram consigo uma grave crise social:
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Crescimento descontrolado das cidades industriais.
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Proletarização em massa.
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Trabalho infantil.
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Jornadas desumanas.
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Degradação moral nas classes operárias.
O liberalismo econômico, emergente no contexto iluminista, via o progresso técnico como um bem absoluto, divorciado de qualquer consideração ética ou moral. O lucro tornou-se critério de sucesso, e a dignidade humana foi relegada a segundo plano.
Parte II – A escolha de D. Maria I: prudência, piedade e defesa social
Diante desse cenário internacional, D. Maria I, formada pela cultura da Contra-Reforma e orientada por uma piedade profundamente católica, tomou a decisão de proibir a instalação de fábricas nas colônias, incluindo o Brasil.
Longe de ser um simples reflexo de protecionismo econômico, essa política expressava uma compreensão intuitiva, mas profundamente sensata, dos seguintes riscos:
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Desorganização das estruturas sociais tradicionais.
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Proletarização precoce e sem salvaguardas jurídicas adequadas.
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Importação de um modelo de trabalho desumano, com forte potencial de gerar conflitos sociais irreparáveis.
A ausência de um arcabouço doutrinário como a Doutrina Social da Igreja, que só surgiria décadas depois, fazia de sua decisão um ato de prudência extraordinária, baseada na tradição moral e na experiência da Igreja como Mestra da humanidade.
Parte III – A virtude da prudência Segundo Santo Tomás de Aquino
Para entender a profundidade dessa escolha, é preciso recorrer à teologia moral.
Segundo Santo Tomás de Aquino, a prudência (prudentia) é a virtude que governa todas as demais virtudes práticas, pois é por ela que o governante discerne, entre os meios disponíveis, aqueles mais adequados para alcançar o bem comum.
"É próprio da prudência dirigir as outras virtudes morais, não impondo-lhes a sua própria forma, mas determinando-lhes a medida justa de cada ação."
(Suma Teológica, II-II, q. 47, a. 8)
No caso específico de D. Maria I, sua prudência política consistiu em:
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Reconhecer os limites da estrutura social de seu povo.
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Antever as consequências negativas de uma industrialização prematura.
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Recusar o falso dogma da modernidade de que toda inovação técnica é um bem.
Ela preferiu conservar o que era moralmente conveniente e socialmente sustentável, mesmo sob o custo político de ser incompreendida.
Parte IV – O bem comum: critério supremo da ação política cristã
Ainda segundo a filosofia tomista, o fim da política é o bem comum, não o crescimento econômico em si.
O bem comum inclui:
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A ordem e a paz social.
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A justiça distributiva.
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A promoção da virtude nos cidadãos.
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A garantia das condições materiais mínimas para uma vida digna.
D. Maria I agiu como uma verdadeira ministra da Providência, zelando para que as condições de vida em seus territórios permanecessem ordenadas segundo os critérios da justiça natural e da caridade social.
Ela viu, com clareza moral, que a introdução de fábricas sem as devidas salvaguardas sociais seria um atentado contra o bem comum, algo incompatível com sua missão de soberana cristã.
Parte V – O que acontece quando falta prudência? Uma comparação com a Inglaterra
Enquanto D. Maria I resistia ao modelo industrial sem freios, a Inglaterra abraçava com entusiasmo a ideologia do progresso técnico, produzindo uma série de efeitos devastadores:
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Formação de um proletariado miserável.
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Urbanização caótica.
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Violência social e aumento da criminalidade.
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Abandono das práticas religiosas entre os operários.
Autores como Charles Dickens e Friedrich Engels documentaram essas tragédias com detalhes. Já em Portugal e no Brasil, a ordem social permaneceu mais estável e menos conflituosa até meados do século XIX, graças, em grande parte, à política de contenção industrial promovida por D. Maria I.
Parte VI – Antecipação da Doutrina Social da Igreja
A Encíclica Rerum Novarum (1891) de Leão XIII marcaria, no fim do século XIX, o início de uma reflexão doutrinária sólida por parte da Igreja sobre os problemas sociais modernos, propondo:
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O direito dos trabalhadores.
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A função social da propriedade.
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A intervenção moderada do Estado na economia.
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O dever de justiça social por parte dos empregadores.
D. Maria I, ainda que sem esse corpo doutrinário por escrito, praticou, na sua política econômica, os mesmos princípios de justiça, prudência e cuidado com os pobres que depois seriam formalizados pelo Magistério.
Ela foi, portanto, uma precursora da Doutrina Social da Igreja na prática, antes que ela existisse na teoria.
Conclusão: de "louca" aos olhos do mundo à rainha prudente aos olhos de Cristo
A posteridade secular pode continuar a chamá-la de "louca", mas para aqueles que analisam a história com os olhos da justiça e da caridade cristã, D. Maria I foi uma soberana exemplar, que, nos méritos de Cristo, protegeu seu povo contra os enganos do falso progresso.
Sua fidelidade ao bem comum, sua prudência política e sua piedade pessoal a colocam ao lado de outros grandes governantes cristãos que souberam resistir às modas ideológicas de seu tempo para permanecer fiéis ao serviço da verdade e da justiça.
Diante de um mundo que idolatra a inovação sem critério, a figura de D. Maria I nos ensina que nem toda novidade é um bem, e que conservar o que é moralmente conveniente é, muitas vezes, o ato mais revolucionário que um cristão pode realizar.
Bibliografia e Referências:
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Tomás de Aquino. Suma Teológica, II-II, Questões 47-56 (Tratado da Prudência).
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Leão XIII. Rerum Novarum. Roma: Vaticano, 1891.
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Hobsbawm, Eric. A Era das Revoluções: 1789-1848. São Paulo: Paz e Terra, 2013.
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Boxer, Charles. O Império Marítimo Português: 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 1991.
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Russell-Wood, A.J.R. The Portuguese Empire, 1415-1808: A World on the Move. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1998.
-
Dickens, Charles. Hard Times. Londres: Bradbury & Evans, 1854.
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Engels, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Leipzig: 1845.
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Pieper, Josef. As Virtudes Fundamentais. São Paulo: Loyola, 2001.
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Burke, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. Lisboa: Gradiva, 2007.
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Belloc, Hilaire. The Servile State. Londres: T.N. Foulis, 1912.
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