Há uma convergência profunda entre o diagnóstico feito por Olavo de Carvalho sobre o atual monopólio da produção científica e as reflexões históricas de Jaime Cortesão sobre os fatores democráticos na formação de Portugal. Ambos, cada um a seu modo, chamam a atenção para o papel insubstituível do povo como sujeito ativo na construção da ordem social, seja ela política, territorial ou científica.
A raiz orgânica da democracia portuguesa
Jaime Cortesão, ao estudar a formação de Portugal, não via a democracia como fruto de concessões de cima para baixo ou de revoluções episódicas. Ele via a democracia como um resultado de séculos de participação popular efetiva na ocupação e defesa do território. O povo português, ao expandir as fronteiras, ao cultivar a terra, ao povoar as aldeias e vilas, ao organizar as suas instituições locais, foi gradualmente construindo uma estrutura política onde a autoridade não podia se desvincular da realidade concreta daqueles que viviam e morriam por ela.
A autoridade, naquele contexto, era antes uma representação da liberdade popular do que uma imposição externa. O que Jaime Cortesão descreve é uma democracia substancial, enraizada na história viva de um povo que, por meio de sua colaboração constante, aperfeiçoava a própria autoridade que o governava.
O problema da ciência monopolizada
O que Olavo de Carvalho faz, em seu comentário de seis anos atrás, é trazer essa exigência de participação popular para o campo da ciência. Ele denuncia que hoje o povo é reduzido à condição de mero pagador de impostos, sem qualquer voz sobre o destino das verbas destinadas à pesquisa científica.
Num sistema onde um pequeno círculo de políticos, burocratas e bilionários decide o que se pode investigar e o que deve permanecer fora dos campos de estudo, a democracia não passa de um verniz populista. Tal como em regimes de dominação hierárquica do passado, um grupo seleto decide as perguntas que podem ser feitas e as respostas que podem ser dadas.
Essa seleção prévia das questões científicas forma, no plano cultural e psicológico, o equivalente de uma censura intelectual global. Quem define as perguntas, domina o imaginário coletivo. Quem controla a produção de conhecimento, controla a percepção pública da realidade. É o novo formato da tirania.
O que o povo deseja saber — nos méritos de Cristo
Mas a exigência olaviana não é uma defesa de uma "tirania da maioria" sem critério. O ponto crucial está em que o povo, enquanto totalidade dos consumidores, eleitores e pagadores de impostos, tem direito a saber e a demandar conhecimento — não qualquer conhecimento, mas aquilo que é necessário para a boa ordenação da vida, da moral e da sociedade.
Aqui entra a chave que dá sentido à junção entre Olavo e Cortesão: o povo, nos méritos de Cristo, tem sede da verdade. Não é uma massa amorfa pedindo frivolidades ou entretenimentos científicos. Quando o povo é iluminado pela graça, sua demanda é por justiça, por verdade, por bem comum. Os cientistas, portanto, devem ser obrigados a investigar aquilo que corresponde às legítimas inquietações de um povo que deseja viver em conformidade com a verdade.
Como outrora os camponeses portugueses, ao povoarem as terras conquistadas, exigiam um governo que respondesse aos seus interesses reais e concretos, hoje os cidadãos devem exigir uma produção científica que não sirva apenas aos interesses de uma elite globalista, mas que seja orientada pelas necessidades e pelos anseios morais e espirituais do povo.
Ciência, autoridade e liberdade
Se a ciência permanece nas mãos de uma elite que se considera acima de qualquer controle popular, ela se torna uma arma de engenharia social. Se, ao contrário, os rumos da pesquisa forem definidos de modo a servir o bem comum, conforme os méritos de Cristo, então a ciência pode se tornar um instrumento legítimo de aperfeiçoamento da autoridade.
A democracia autêntica, seja no campo político, seja no campo científico, só se realiza quando a autoridade se alimenta da liberdade viva de um povo que, consciente de sua missão histórica, colabora com a autoridade para o bem comum.
Como outrora nas aldeias portuguesas, hoje também o território — físico ou intelectual — precisa ser povoado de modo responsável. O povo deve exigir que as perguntas certas sejam feitas. E os cientistas, queiram ou não, terão de responder.
Notas de Rodapé:
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Jaime Cortesão, Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal, Lisboa: Livros Horizonte, 1974.
(Cortesão apresenta, nesta obra, uma análise histórica sobre como o povo português, desde a fundação do país, participou ativamente da construção da ordem política nacional, criando um modelo peculiar de democracia orgânica.) -
Olavo de Carvalho, publicação na página "Tributo a Olavo de Carvalho", Facebook, 14 de junho de 2025.
(Transcrição: "A coisa MAIS DECISIVA para o futuro da democracia em qualquer lugar do mundo é que o povo -- a totalidade dos consumidores, eleitores e pagadores de impostos -- tenha voz ativa na distribuição das verbas de pesquisa científica, hoje monopólio de um reduzido círculo de políticos, burocratas e bilionários..." Postagem feita originalmente por Olavo há seis anos, segundo o próprio registro da publicação.)
Bibliografia:
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CORTESÃO, Jaime. Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1974.
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DE CARVALHO, Olavo. Publicação na página "Tributo a Olavo de Carvalho". Facebook, 14 de junho de 2025. Transcrição baseada em captura de tela:
"A coisa MAIS DECISIVA para o futuro da democracia em qualquer lugar do mundo é que o povo -- a totalidade dos consumidores, eleitores e pagadores de impostos -- tenha voz ativa na distribuição das verbas de pesquisa científica..." -
CARVALHO, Olavo de. O Imbecil Coletivo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.
(Embora não citado diretamente, é relevante como leitura complementar sobre a crítica de Olavo ao monopólio intelectual.) -
CORTESÃO, Jaime. História de Portugal: A Formação do Território. Lisboa: Bertrand, 1940.
(Para aprofundamento sobre a relação entre povoamento e organização social em Portugal.)
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