Entre o código de honra e a luta corporal: o hóquei como rito de passagem masculino
Quando o torcedor comum assiste a uma partida de hóquei na NHL, o que ele vê é velocidade, técnica, habilidade e, claro, as famosas brigas. Mas o que muitos não percebem é que por trás de cada corpo arremessado contra a proteção, de cada soco lançado no centro do rinque e de cada gol celebrado no vestiário, há algo mais antigo do que o próprio esporte: um espírito de irmandade, forjado na honra, na lealdade e na aceitação consciente do sacrifício físico.
Em outras palavras: cada time da NHL é uma guilda de combate, uma ordem de cavaleiros sem armadura, cujos códigos não estão escritos em papel, mas sim tatuados na carne e na memória dos jogadores.
O "código": a ética invisível do hóquei
Na Idade Média, o cavaleiro tinha seu código de cavalaria. O aprendiz de uma guilda de ofício tinha o estatuto do mestre-artesão. No gelo da NHL, existe o que os veteranos chamam de “The Code”.
O Código do hóquei não está em nenhum regulamento oficial da liga. Não é ensinado em clínicas de patinação. Ele é passado de boca em boca, de vestiário em vestiário, de punho fechado a punho fechado. E, assim como nas antigas guildas, quebrar o código é um caminho sem volta para o ostracismo e a perda de respeito entre os pares.
Entre as regras tácitas estão:
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Nunca atacar um jogador que esteja vulnerável.
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Nunca deixar um companheiro apanhar sozinho.
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Responder fisicamente quando um oponente cruza a linha da violência gratuita.
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Não humilhar desnecessariamente o adversário derrotado.
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Saber quando lutar e quando recuar.
O enforcer: o cavaleiro de armadura invisível
Dentro dessa estrutura de guilda, existe um papel específico que remonta diretamente aos antigos cavaleiros: o enforcer.
Ele não está ali para acumular pontos ou estatísticas de ataque. Sua função é proteger, intimidar quando necessário e manter a ordem moral do gelo.
Jogadores como Bob Probert, Marty McSorley e Tie Domi não eram apenas lutadores: eram garantidores da justiça dentro das quatro linhas de gelo. Eles eram o braço armado da honra da equipe. Quando um astro ofensivo apanhava covardemente, o enforcer era chamado. Não por vingança pessoal, mas por justiça em nome da coletividade.
O rito de passagem: a primeira briga, o primeiro sangue
Assim como o escudeiro precisava provar sua coragem no campo antes de receber o título de cavaleiro, o jovem jogador na NHL muitas vezes precisa passar por seu “batismo de sangue”: a primeira briga.
Não se trata de violência gratuita. Trata-se de mostrar aos companheiros de time que ele está disposto a pagar o preço para fazer parte daquela irmandade.
Veteranos como George Parros e Colton Orr contam em entrevistas que a primeira briga foi mais uma prova de caráter do que de força. Não é preciso vencer. É preciso mostrar que você tem coração.
O vestiário: a capela da irmandade
Se o gelo é o campo de batalha, o vestiário é a catedral dessa irmandade. Ali, lágrimas e sangue se misturam com o suor. Discursos de líderes de equipe têm o tom de sermões. As conversas nos intervalos de jogo são como conselhos de guerra. Os abraços depois de uma vitória suada têm mais significado do que muitas celebrações familiares.
Ali dentro, o que acontece no vestiário fica no vestiário. Um princípio tão rígido quanto o segredo de um confessionário.
A conversão pós-carreira: do banco de penalidades ao altar
Tal como muitos cavaleiros, ao final de suas jornadas, vários enforcers e ex-jogadores da NHL enfrentam o vazio do pós-carreira. Alguns caem no alcoolismo, outros em depressão. Mas muitos encontram redenção em Deus.
O banco de penalidades se torna, simbolicamente, um ensaio para o confessionário.
Exemplos não faltam de jogadores que, após anos de brigas e cicatrizes, encontraram um chamado maior: convertendo-se ao cristianismo, tornando-se pastores, missionários ou mesmo sacerdotes católicos.
O caso mais emblemático é o de Shawn Thornton, que mesmo não se tornando sacerdote, tornou-se símbolo de serviço comunitário e exemplo de redenção pessoal. Outros, como Mike Fisher, embora não fossem enforcers puros, também representaram esse espírito de homem de fé após a carreira.
Conclusão: uma ordem cavaleiresca no século XXI
A NHL, vista por este prisma, é mais do que um campeonato de hóquei. É uma ordem moderna de guerreiros. Homens que se unem por um ideal maior que eles mesmos. Que se levantam quando caem. Que protegem os seus. Que lutam com honra.
Eles são os cavaleiros de hoje. Apenas trocaram a armadura de ferro por capacetes de policarbonato e armam-se não com espadas, mas com tacos e punhos cerrados.
No fim das contas, o gelo da NHL é o campo onde a honra ainda é uma moeda com valor real.
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