Introdução
O debate sobre a propriedade e a gestão de usinas nucleares não é novo, mas ganha contornos dramáticos em momentos de instabilidade política, geopolítica e de crise institucional. O Brasil, detentor de uma das maiores reservas de urânio do mundo e operador de um parque nuclear estatal restrito, encontra-se em meio a discussões sobre a possibilidade de abertura desse setor estratégico à iniciativa privada. Neste contexto, o risco de captura institucional por agentes políticos pouco comprometidos com a soberania nacional se soma a um histórico global de controvérsias sobre os limites da propriedade pública e privada na gestão de recursos estratégicos.
O cenário internacional: usinas nucleares privadas
Nos Estados Unidos, por exemplo, a propriedade privada de usinas nucleares é uma realidade consolidada desde a década de 1950. Empresas como Exelon, Entergy e Dominion Energy operam reatores nucleares civis sob rígida supervisão da Nuclear Regulatory Commission (NRC). No Reino Unido, a EDF Energy, apesar de ser uma subsidiária da estatal francesa EDF, opera como empresa privada no mercado britânico. No Japão, antes do desastre de Fukushima, a Tokyo Electric Power Company (TEPCO), uma empresa privada, era responsável por grande parte da geração nuclear do país.
A experiência internacional revela que a gestão privada de energia nuclear é tecnicamente possível, mas sempre fortemente regulada, com altos níveis de exigência em segurança, responsabilidade civil e controle estatal sobre o ciclo do combustível nuclear.
O caso brasileiro: monopólio estatal e perspectivas de flexibilização
No Brasil, o monopólio da exploração de energia nuclear é constitucional. O artigo 21, inciso XXIII, da Constituição Federal de 1988, determina que compete exclusivamente à União "explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e o reprocessamento de minérios nucleares e seus derivados".
Entretanto, a crise fiscal do Estado brasileiro, somada à necessidade de expansão da matriz energética de base limpa, reaqueceu o debate sobre a participação privada no setor nuclear. Projetos de lei, estudos técnicos e propostas de parcerias público-privadas (PPPs) vêm sendo discutidos nos últimos anos, visando atrair capital privado para a construção de novas usinas, como a planejada Angra 3, cuja conclusão foi interrompida por problemas de financiamento e escândalos de corrupção.
Lições do Passado: o fracasso da propriedade pública mal gerida
A obra "Where and Why Public Ownership Has Failed", de Yves Guyot (1914), é um clássico da literatura liberal que analisa criticamente os insucessos da gestão estatal em diversos setores da economia. Guyot demonstra, com exemplos históricos, como a má gestão, a burocracia e a politização excessiva podem tornar a propriedade pública ineficiente, corrupta e lesiva ao interesse nacional. Embora escrito há mais de um século, o livro continua atual, especialmente quando se observa o caso brasileiro, onde escândalos de corrupção envolvendo empresas estatais — como a Petrobras e a Eletronuclear — são recorrentes.
O Risco Geopolítico: quando a captura estatal é pior que a privatização
Entretanto, há um paradoxo importante: embora a propriedade pública seja teoricamente um instrumento de defesa da soberania, ela também pode ser capturada por elites políticas corruptas. Em um cenário de "traficância de influência", como o que se insinua no atual governo, há o risco concreto de que ativos estratégicos nacionais sejam instrumentalizados para beneficiar regimes hostis aos interesses do Brasil e do Ocidente. Um exemplo hipotético, mas plausível, seria o uso da Indústrias Nucleares do Brasil (INB) — a única produtora de urânio do continente — como fornecedora indireta de regimes como o do Irã, os conhecidos "aiatolás", violando sanções internacionais e colocando o Brasil em rota de colisão com parceiros estratégicos.
Neste sentido, a privatização com cláusulas rigorosas de segurança nacional, controle sobre o ciclo do combustível, e presença de agências reguladoras fortes pode, paradoxalmente, ser um instrumento de proteção mais eficaz contra a captura por grupos ideologicamente alinhados a regimes antidemocráticos.
Conclusão
O debate entre privatização e estatização no setor nuclear não pode ser simplificado em dicotomias ideológicas rasas. O verdadeiro problema não é a natureza pública ou privada da propriedade, mas sim o risco de captura por interesses escusos — sejam eles privados ou governamentais.
A lição que se extrai de autores como Yves Guyot é clara: tanto a má administração pública quanto a privatização descontrolada podem ser desastrosas. O que o Brasil precisa é de um modelo de governança que assegure eficiência operacional, segurança nacional e imunidade à corrupção — com ou sem participação privada.
Referências
GUYOT, Yves. Where and Why Public Ownership Has Failed. New York: The Macmillan Company, 1914.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
NUCLEAR REGULATORY COMMISSION (NRC). United States Government. Disponível em: https://www.nrc.gov. Acesso em: 22 jun. 2025.
INTERNATIONAL ATOMIC ENERGY AGENCY (IAEA). Country Nuclear Power Profiles. Viena: IAEA, 2024.
SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 576/2021. Dispõe sobre a participação da iniciativa privada na exploração da energia nuclear. Brasília: Senado Federal.
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