Em uma declaração que ressoou com força nos meios políticos e jurídicos do país, Aldo Rebelo — ex-ministro e uma das figuras mais lúcidas do cenário nacional — afirmou categoricamente: “Nós não temos mais Constituição. Temos onze Constituições ambulantes.” A crítica, direta e contundente, lança luz sobre uma crise silenciosa, mas profunda: a desfiguração do Estado de Direito pela hipertrofia interpretativa do Supremo Tribunal Federal (STF).
Segundo Rebelo, cada ministro da Corte Constitucional interpreta a Constituição conforme sua própria visão, criando, na prática, um sistema jurídico de múltiplas constituições particulares, mutantes e personalizadas. O que deveria ser a salvaguarda última da ordem legal se torna, sob essa ótica, um arquipélago de vontades individuais.
A personalização da Justiça
A crítica de Rebelo não recai sobre indivíduos, mas sobre a instituição em sua atual configuração. O STF, outrora símbolo da estabilidade jurídica, transformou-se — na leitura do ex-ministro — num organismo fragmentado, onde cada magistrado atua como legislador autônomo, usurpando competências e fragilizando os princípios da separação dos poderes e da legalidade.
Essa constatação traz consigo uma inquietante conclusão: a Constituição de 1988 teria esgotado seu ciclo histórico. Produzida em um momento de transição e abertura democrática, ela já não daria conta dos desafios institucionais contemporâneos.
Do Emendão à Nova Constituinte
Para enfrentar o impasse, Rebelo propõe dois caminhos:
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O “emendão” — uma grande e abrangente emenda constitucional que reorganize as relações entre os poderes da República, contenha os excessos interpretativos e restabeleça a autoridade da letra constitucional.
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Uma nova Constituinte — uma medida mais ambiciosa e ousada, que representaria a refundação do pacto político nacional, criando uma nova Carta Magna em sintonia com os desafios do presente.
Ambas as propostas, no entanto, carregam riscos e exigem cautela. O emendão pode se tornar um remendo apressado, sem resolver os vícios estruturais do sistema. Já a convocação de uma Constituinte abre um campo de incertezas, podendo tanto corrigir rumos quanto agravar divisões.
O STF como Poder Moderador de fato
Há, por trás da denúncia de Rebelo, uma constatação de ordem prática: o Supremo Tribunal Federal se tornou o verdadeiro poder moderador da República, com autoridade para intervir nos demais poderes, reinterpretar normas de forma criativa e até mesmo, em certos casos, legislar por meio de decisões monocráticas.
A ausência de freios e contrapesos eficazes à atuação do STF transforma o poder que deveria garantir a Constituição em um órgão constituinte permanente, o que corrói a previsibilidade do direito e mina a confiança popular nas instituições.
Conclusão: entre a lei e a vontade
A fala de Aldo Rebelo é, mais que uma denúncia, um chamado à lucidez. O Brasil vive uma encruzilhada institucional: ou restabelece os fundamentos do Estado de Direito, com uma Constituição respeitada e aplicada segundo critérios objetivos, ou sucumbe ao voluntarismo togado, em que o poder de um juiz suplanta a vontade do povo expressa na lei.
O debate proposto não é de esquerda ou de direita. É uma questão de ordem, de justiça e de sobrevivência do regime republicano. O Brasil precisa, com coragem e sabedoria, decidir se ainda quer viver sob uma Constituição impessoal e estável, ou sob o império mutável de onze vontades individuais.
Bibliografia
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REBELO, Aldo.
Declarações públicas sobre o Supremo Tribunal Federal e a Constituição Brasileira.
Fonte: Entrevista transcrita, 2025.
— Base principal do artigo, onde o autor expressa a ideia de que o STF atua como onze constituições ambulantes e propõe um “emendão” ou uma nova constituinte como solução. -
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— Obra clássica que trata da hermenêutica constitucional e da atuação do STF. Útil para compreender o papel original do tribunal e os limites da interpretação judicial. -
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— Documenta o momento em que o STF passou a ganhar protagonismo político, ajudando a entender a transição do tribunal para um poder moderador de fato. -
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— Embora de natureza filosófica, a obra explora os fundamentos da ordem política e do poder judiciário, com críticas à tecnocracia e à hipertrofia institucional. -
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— Fundamenta a ideia de soberania popular como critério de legitimidade constitucional. Serve de contraponto crítico ao ativismo judicial. -
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— Referência segura sobre os princípios constitucionais e a evolução histórica da Constituição de 1988. Ajuda a entender as fragilidades apontadas por Aldo Rebelo. -
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— Obra essencial para compreender a diferença entre jurisdição constitucional e governo dos juízes, uma distinção fundamental no debate sobre o STF. -
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— Analisa o processo histórico que levou ao empoderamento do Judiciário no Brasil, incluindo os aspectos sociopolíticos da atuação do STF.
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