Mamãe herdou o carro do meu pai, e com ele vieram não apenas as obrigações práticas da vida que se segue, mas também o peso imaterial de lembranças, ausências e gratidões silenciosas. Entre as lembranças, uma se impõe com especial nitidez: a da vizinha que nos socorreu quando meu pai faleceu.
Foi ela quem, com uma generosidade que não se aprende em livros, esteve presente no momento mais difícil. E seu filho, ainda um rapaz, sempre demonstrou um carinho particular pelo carro do meu pai — não como quem apenas deseja um bem material, mas como quem percebe, mesmo sem palavras, o valor afetivo de um objeto que guarda a presença de alguém querido.
Com o passar do tempo, amadureceu em nós a convicção de que aquele bem não nos pertencia por completo. Recebê-lo em herança foi, sim, um direito legal; mas havia uma dívida moral — anterior ao direito — que pedia resposta. Por isso, formalizamos a transmissão do carro ao filho daquela mulher que tanto nos ajudou. E o fizemos por meio de um contrato de compra e venda, símbolo de uma doação velada, onde a forma jurídica apenas sustentou o gesto de justiça.
Nesse ato, o filho da vizinha tornou-se sucessor a título singular desse bem de meu pai. Herdou, por assim dizer, não diretamente de meu pai, mas de nós, os herdeiros, que agimos como pontes entre o gesto de amor que recebemos e o bem que simbolizava esse amor. Tornou-se beneficiário indireto da sucessão, não por acaso, mas por mérito. Porque a justiça, quando é verdadeira, busca quem a merece.
Hoje, ao vê-lo guiando o carro do meu pai, não vejo perda, mas cumprimento. Cumprimento de um ciclo. Cumprimento de um dever. E, sobretudo, cumprimento de uma promessa não feita em palavras, mas inscrita no coração de quem sabe que a gratidão não se arquiva — se honra.
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