Durante o século XIX, em plena Era Imperial, o Brasil se destacou nos círculos financeiros internacionais por um motivo pouco lembrado nos dias de hoje: por contta de sua reputação como bom pagador. Num mundo marcado por guerras, revoluções e calotes soberanos — especialmente na Europa pós-Revolução Francesa —, o Brasil oferecia algo raro: estabilidade institucional e responsabilidade fiscal.
O crédito no século XIX: Londres como centro do mundo
Naquela época, a City de Londres era o coração do sistema financeiro global. Era lá que os países soberanos buscavam financiamento para obras públicas, guerras ou expansão territorial. Os banqueiros britânicos, prudentes e avessos ao risco, preferiam financiar governos que demonstrassem capacidade e disposição de honrar compromissos financeiros.
Não era comum encontrar países que unissem esses dois fatores. Mesmo na Europa, após o colapso do Antigo Regime e a difusão de ideias revolucionárias, muitos governos passavam por mudanças bruscas de regime, moratórias, confisco de dívidas e instabilidades que geravam enorme insegurança para quem emprestava capital.
O contraste brasileiro: monarquia estável, contas em ordem
Nesse cenário, o Brasil Imperial oferecia um raro contraponto. Desde os tempos de D. Pedro I, mas especialmente sob o reinado de D. Pedro II (1840–1889), o país consolidou uma monarquia constitucional com mecanismos institucionais que garantiam uma ordem jurídica previsível e uma sucessão política estável.
Além disso, o governo imperial se preocupava em manter boa reputação junto aos credores estrangeiros. Mesmo em momentos de dificuldade econômica, havia um esforço deliberado para não dar calote. O Brasil frequentemente pagava suas dívidas em dia, com disciplina orçamentária, algo que inspirava confiança nos mercados.
Essa confiança era tão grande que, em alguns casos, os títulos brasileiros eram emitidos com juros baixos — e até mesmo negativos em termos reais —, porque os investidores preferiam receber menos, mas ter a garantia de receber, do que arriscar rendimentos maiores em países europeus em crise.
Por que isso acontecia?
A explicação envolve três elementos fundamentais:
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Estabilidade política interna – Apesar de revoltas regionais, o Brasil permaneceu unido e sob uma mesma Constituição durante quase todo o século XIX, algo raro na América Latina.
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Credibilidade internacional – O Itamaraty, desde cedo, construiu uma política externa cautelosa, sem aventuras expansionistas, e baseada no respeito aos compromissos diplomáticos e comerciais.
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Boa vontade com o capital estrangeiro – O Império entendia que o desenvolvimento nacional dependia, em parte, da confiança externa. Por isso, mantinha uma relação estratégica com os bancos europeus, especialmente os britânicos.
O colapso da confiança: a República e a moratória
Esse quadro mudou radicalmente com a Proclamação da República, em 1889. O novo regime, instaurado por um golpe militar, herdou a dívida externa do Império, mas em pouco tempo perdeu o prestígio conquistado ao longo de décadas. O episódio mais emblemático dessa ruptura foi o "funding loan" de 1898, uma reestruturação da dívida sob condições duríssimas, imposta pelos credores após a crise do Encilhamento e o descrédito financeiro da jovem república.
Em contraste com a responsabilidade do governo monárquico, os primeiros governos republicanos mostraram-se instáveis, pouco confiáveis e frequentemente inclinados a aventuras econômicas desastradas.
Conclusão
O Brasil Imperial foi, durante boa parte do século XIX, um exemplo de responsabilidade fiscal e estabilidade política num mundo em ebulição. Essa combinação rendeu ao país condições de crédito invejáveis, mesmo com taxas de juros que refletiam mais a confiança na ordem política do que o risco econômico tradicional.
Essa história nos convida a uma reflexão profunda: a confiança é um capital silencioso, construído com paciência e perdido com rapidez. No caso do Império do Brasil, esse capital foi fruto de uma cultura política orientada por princípios de honra, previsibilidade e dever moral — valores que, se recuperados, ainda poderiam fazer do Brasil um país respeitado e seguro aos olhos do mundo.
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