1. Introdução: O Tempo e a Ordem dos Rituais
Ao longo da história, as sociedades organizaram seu tempo segundo duas categorias fundamentais: Chronos, o tempo sequencial, mensurável, linear, do trabalho, da produção e da rotina; e Kairós, o tempo oportuno, qualitativo, sagrado, aquele que marca as pausas extraordinárias, os ritos, as festas, os encontros que dão sentido à vida.
O All-Star Game, nas suas origens, pertence claramente ao domínio de Kairós. Ele não é parte da sequência cronológica da temporada. Ao contrário, ele interrompe o curso da temporada regular, abrindo um espaço de celebração, consagração, honra e exceção. É o jogo dos melhores, dos escolhidos, dos heróis do tempo presente. Não importa quem vai vencer — importa quem ali está, porque aquilo é uma assembleia de excelência, de representação simbólica, quase litúrgica.
2. A Tentativa de Colonização de Kairós por Chronos
À medida que o mercado avança, a lógica do desempenho permanente e da produtividade incessante tenta suprimir os tempos extraordinários, absorvendo-os para dentro da linearidade do tempo cronológico. Um exemplo concreto disso foi a tentativa da MLB de fazer com que a vitória no All-Star Game garantisse o mando de campo nas finais. Ou seja, transformar um tempo que deveria ser gratuito, festivo e simbólico em mais uma variável instrumental dentro da lógica competitiva da temporada — um tempo que é cronológico.
O efeito, como se poderia prever a partir da análise de Polanyi, Han, Debord e Bauman, foi paradoxal: em vez de aumentar o valor simbólico e o prestígio do jogo, desvalorizou-o. A tentativa de atribuir uma função prática ao rito destrói o próprio rito.
3. A Transferência da Função Rítmica: Do All-Star Game ao Wild Card
No vácuo deixado pela degradação do tempo kairológico do All-Star Game, um novo evento emerge para cumprir parcialmente essa função: o jogo do Wild Card. Diferente da série de playoffs, que se inscreve plenamente no tempo cronológico da competição (melhor de cinco, de sete, etc.), o Wild Card é um jogo único, um momento decisivo, carregado de tensão existencial, onde tudo se define em poucas horas.
Paradoxalmente, o Wild Card não pertence plenamente nem a Chronos nem a Kairós. Ele é uma espécie de híbrido contemporâneo, que surge justamente do colapso da distinção entre os dois tempos. Funciona melhor que o All-Star Game moderno em sua capacidade de mobilizar atenção, emoção e sentido, mas o faz não mais como rito, e sim como espetáculo de risco máximo, aderindo à lógica líquida e ansiosa da modernidade.
4. Consequências Antropológicas e Culturais
A dissolução do tempo kairológico no calendário esportivo reflete uma transformação antropológica mais ampla. A cultura contemporânea não sabe mais pausar. Não sabe mais produzir intervalos carregados de sentido. Tudo deve ser fluxo, desempenho, produtividade, engajamento, audiência. A experiência do extraordinário, que deveria estar marcada pelo All-Star Game, é esvaziada, triturada pela lógica do conteúdo constante e da monetização incessante.
Quando Debord fala da Sociedade do Espetáculo, ele descreve precisamente esse processo: a substituição da experiência direta, qualitativa, comunitária, por uma sequência infinita de representações consumíveis.
Quando Bauman descreve a Modernidade Líquida, ele aponta que até os vínculos simbólicos, como o pertencimento a uma comunidade de fãs ou a tradição de um evento, tornam-se descartáveis, mutáveis e frágeis.
Quando Han fala do Desaparecimento dos Rituais, ele lamenta justamente que o mundo moderno tenha perdido sua capacidade de produzir pausas significativas, intervalos carregados de solenidade e reverência.
5. Conclusão: O Jogo que Perdemos
O All-Star Game não é apenas um jogo de basquete: é um espelho do modo como nossa civilização lida com o tempo, o rito e o sentido. Sua degradação reflete a tentativa da modernidade de suprimir Kairós e submeter tudo a Chronos.
O jogo do Wild Card cumpre hoje, de maneira precária, a função que outrora pertencia ao All-Star Game: dar ao público uma experiência que parece extraordinária, justamente porque é única, irrepetível e definitiva. No entanto, faz isso não mais como rito, mas como espetáculo de risco e de ansiedade — sinal inequívoco de que a modernidade líquida não sabe mais celebrar: apenas consome.
Bibliografia Complementar (Atualizada)
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Adorno, T. W.; Horkheimer, M. (1985). Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar.
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Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar.
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Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto.
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Byung-Chul Han. (2017). Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes.
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Byung-Chul Han. (2021). Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes.
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Byung-Chul Han. (2023). O Desaparecimento dos Rituais: Uma Topologia do Presente. Lisboa: Relógio D’Água.
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Polanyi, K. (2000). A Grande Transformação: As Origens da Nossa Crise Atual. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus.
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Sennett, R. (1999). A Corrosão do Caráter: As Consequências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. Rio de Janeiro: Record.
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Eliade, M. (1974). O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões. São Paulo: Martins Fontes. (Referência essencial sobre a distinção entre tempo sagrado e tempo profano).
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