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segunda-feira, 2 de junho de 2025

O All-Star Game como alegoria do desenraizamento na nodernidade tardia: uma leitura a partir de Karl Polanyi, Byung-Chul Han, a Escola de Frankfurt, Guy Debord e Zygmunt Bauman

Resumo

O presente artigo propõe uma reflexão sobre a transformação do All-Star Game da NBA — de um evento esportivo enraizado culturalmente a um espetáculo esvaziado de sentido — como sintoma das dinâmicas de desenraizamento próprias da modernidade tardia. Utilizando como referenciais teóricos A Grande Transformação, de Karl Polanyi, a crítica da indústria cultural da Escola de Frankfurt, as análises da Sociedade do Espetáculo de Guy Debord, a Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman e as obras de Byung-Chul Han, argumenta-se que a mercantilização absoluta das práticas culturais levou à degradação dos rituais, da solenidade e da experiência comunitária no esporte. O All-Star Game, assim, torna-se uma alegoria da sociedade contemporânea: hiperexposta, saturada de conteúdos e profundamente esvaziada de significado.

1. Introdução

O esporte moderno, enquanto fenômeno social, sempre desempenhou funções que ultrapassam sua dimensão física ou recreativa. Competições, torneios e eventos especiais, como o All-Star Game da National Basketball Association (NBA), foram historicamente entendidos como rituais culturais, com funções simbólicas ligadas à celebração da excelência, da coletividade e do pertencimento.

No entanto, observa-se, nas últimas décadas, um esvaziamento simbólico desse tipo de evento, que deixa de ser um marco de celebração esportiva para se converter em mais uma peça no fluxo incessante de entretenimento e conteúdo. Este artigo analisa tal fenômeno a partir de uma perspectiva crítica, ancorada nos conceitos de mercantilização e desenraizamento (Polanyi, 2000), na crítica à indústria cultural (Adorno e Horkheimer, 1985), na análise da sociedade do espetáculo (Debord, 1997), na modernidade líquida (Bauman, 2001) e nas patologias da modernidade oferecida por Byung-Chul Han (2017; 2021).

2. A mercantilização como destruição do tecido social

Em A Grande Transformação, Karl Polanyi (2000) demonstra que a emergência do mercado autorregulado não foi um desenvolvimento natural, mas uma construção histórica que subjugou todas as esferas da vida social às lógicas econômicas. Nesse processo, elementos que antes pertenciam ao âmbito da vida social — terra, trabalho e moeda — foram transformados em mercadorias fictícias, isto é, objetos de troca submetidos à lógica do mercado, ainda que não tenham sido originalmente produzidos para esse fim.

Analogamente, eventos culturais e esportivos, como o All-Star Game, foram progressivamente convertidos em mercadorias fictícias. O jogo, que no passado funcionava como um rito de celebração comunitária, foi capturado pela lógica da atenção, do engajamento e da monetização, perdendo sua função simbólica e sendo reduzido a um simples episódio de uma série infinita de conteúdos.

3. A Indústria Cultural e A Alienação no Esporte

A Escola de Frankfurt, particularmente através da análise de Adorno e Horkheimer (1985) na Dialética do Esclarecimento, argumenta que a chamada indústria cultural uniformiza a cultura, transformando-a em mercadoria e instrumento de controle social. O entretenimento de massa, que se apresenta como lazer, opera, na verdade, como um mecanismo de reprodução da alienação.

Aplicada ao caso do All-Star Game, essa lógica se manifesta na transformação do evento em mero espetáculo, esvaziado de competição real, de rivalidade significativa e de autenticidade. O jogo, que antes representava uma pausa sagrada no calendário esportivo — um espaço para a celebração da excelência atlética —, é hoje um simulacro de si mesmo, funcional ao circuito do consumo midiático. 

4. A Sociedade do Espetáculo e a Hegemonia da Imagem

Guy Debord (1997), em sua obra Sociedade do Espetáculo, argumenta que na modernidade avançada a realidade social é substituída por sua representação, ou seja, a imagem e o espetáculo passam a dominar as relações sociais. O espetáculo é o triunfo da aparência e da mercadoria sobre o conteúdo e a experiência real.

O All-Star Game atual encaixa-se perfeitamente nessa análise: ele se torna um evento de imagens — highlights nas redes sociais, comerciais, e marketing pessoal dos jogadores — mais do que um jogo de basquete genuíno. A experiência do espectador é mediada por telas, filtros, narrações e narrativas construídas para o consumo rápido, ao invés da imersão em uma experiência coletiva e ritualística.

5. A Modernidade Líquida e a Efemeridade das Experiências

Zygmunt Bauman (2001), em Modernidade Líquida, descreve a transformação das relações sociais e culturais na era contemporânea em que tudo se torna fluido, efêmero e incerto. Os vínculos são frágeis, as identidades transitórias, e os eventos são consumidos de forma imediata e descartável.

Esta liquidez permeia o esporte e seus eventos, como o All-Star Game, que perde seu caráter fixo, solene e esperado, para tornar-se mais um item na lista de conteúdos descartáveis, consumidos rapidamente para logo serem substituídos por outros. O que era um marco anual de festa esportiva transforma-se em um produto líquido, efêmero e desprovido de raízes sólidas no calendário e na cultura popular.

6. Byung-Chul Han e a Estética da Superexposição

Byung-Chul Han (2017; 2021) oferece uma chave contemporânea para compreender o esgotamento dos rituais na sociedade digital. Na Sociedade da Transparência, ele aponta que a cultura contemporânea, marcada pela hiperexposição e pela ditadura da visibilidade, elimina toda opacidade, distância e solenidade. O que resta é um mundo plano, sem aura, sem mistério e, portanto, sem capacidade de produzir experiências autênticas de sentido.

No caso do All-Star Game, a estética da superexposição dissolveu qualquer expectativa ritualística. A possibilidade, antes existente, de esperar pelo grande encontro anual dos melhores jogadores foi substituída por um fluxo incessante de transmissões, highlights, clips, estatísticas em tempo real e narrativas individuais dos jogadores enquanto marcas pessoais. A saturação substituiu a escassez, e o cansaço substituiu o encanto.

7. O Desenraizamento do Tempo e do Espaço Esportivos

O desenraizamento descrito por Polanyi não é apenas econômico, mas também simbólico e temporal. O calendário cristão, que estruturava o tempo da vida em ciclos de trabalho, festa e repouso, foi destruído pela lógica linear e contínua do mercado. Não há mais tempo sagrado; todo o tempo é tempo de consumo (Han, 2017).

O All-Star Game de 1973 pertencia a um tempo extraordinário, delimitado no calendário e no imaginário coletivo como uma celebração única. Na contemporaneidade, este tempo extraordinário desaparece. Tudo se torna parte de um presente contínuo, perpétuo e ansioso. A dissolução das fronteiras simbólicas — entre temporada regular, pós-temporada, treino, amistoso e jogo de gala — reflete a dissolução mais ampla das fronteiras culturais e temporais na sociedade neoliberal.

8. Conclusão

A análise do All-Star Game, mais do que uma simples reflexão sobre esporte, permite compreender uma dinâmica mais ampla da modernidade tardia: o colapso dos rituais, a mercantilização da cultura, a hegemonia do espetáculo e a liquidez das experiências, bem como a exaustão produzida pela lógica do desempenho e da hiperexposição.

O jogo, outrora expressão de excelência, rivalidade nobre e celebração coletiva, converte-se em metáfora de um mundo saturado de conteúdos, mas esvaziado de sentido. O All-Star Game, assim, não é apenas um evento esportivo: é uma alegoria do desenraizamento contemporâneo, no qual tudo o que era sólido — inclusive o próprio tempo sagrado do jogo — se dissolve no ar da mercadoria e da imagem.

Bibliografia

  • Adorno, T. W.; Horkheimer, M. (1985). Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar.

  • Bauman, Z. (2001). Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar.

  • Debord, G. (1997). A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto.

  • Byung-Chul Han. (2017). Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes.

  • Byung-Chul Han. (2021). Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes.

  • Han, Byung-Chul. (2023). O Desaparecimento dos Rituais: Uma Topologia do Presente. Lisboa: Relógio D’Água.

  • Polanyi, K. (2000). A Grande Transformação: As Origens da Nossa Crise Atual. 2ª ed. Rio de Janeiro: Campus.

  • Sennett, R. (1999). A Corrosão do Caráter: As Consequências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. Rio de Janeiro: Record.

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