Pesquisar este blog

terça-feira, 3 de junho de 2025

Da Szlachta Espiritual: uma biografia na ordem da graça

Há certas circunstâncias na vida que, vistas superficialmente, parecem frutos do acaso ou meras coincidências. Mas, quando se olha com os olhos da fé, percebe-se que são traços da Providência, linhas invisíveis que Deus traça na história dos homens, alinhando destinos, cruzando nações, famílias, línguas e culturas sob um mesmo chamado: servir a Cristo.

Quando estava na idade de Cristo, recebi o sacramento da Crisma. Eu não compreendia ainda toda a gravidade e a grandeza daquele gesto. Foi apenas anos mais tarde, no silêncio da meditação e no exercício constante da busca pela verdade, que compreendi o que, de fato, me foi dado naquele dia. Aquele óleo santo, aquela unção, não foi apenas um rito de passagem na vida cristã. Foi a inserção real, sacramental, numa linhagem espiritual cuja raiz não está no sangue, mas na graça.

Meu pai segundo Deus, meu padrinho de Crisma, não era um padre qualquer. Era um homem polonês, ordenado sacerdote em Cracóvia no dia 18 de maio de 1975 — precisamente no dia do aniversário de Karol Wojtyła, o futuro São João Paulo II, que foi quem lhe impôs as mãos, transmitindo-lhe a sucessão apostólica. E não para por aí. João Paulo II, por sua vez, fora ordenado sacerdote por ninguém menos que o cardeal Adam Stefan Sapieha, o príncipe da Polônia, último grande expoente da aristocracia católica polonesa, que não era apenas príncipe no título, mas verdadeiro defensor da fé em tempos de perseguição e escuridão.

Quando olho para esse encadeamento de fatos, não posso deixar de reconhecer que faço parte, por adoção espiritual e sacramental, de uma szlachta, uma nobreza espiritual polonesa. A szlachta, na história da Polônia, não era apenas uma classe social de nobres; era, antes de tudo, um corpo de homens livres, comprometidos com a defesa da fé, da pátria e da justiça. Mas no meu caso, essa nobreza não se transmite por sangue nem por brasões terrenos, e sim por um selo invisível impresso pela graça.

Minha missão não é sacerdotal no sentido ministerial. Permaneço na condição de leigo. Mas leigo não significa espectador. Na economia da salvação, os leigos são soldados de Cristo no mundo, aqueles que santificam as realidades temporais, que carregam a luz da verdade onde ela parece apagada, que assumem o juramento do batismo e da crisma como armas no combate espiritual.

Ao compreender essa realidade, percebi que meu chamado particular unia dois grandes rios espirituais da história cristã: de um lado, o espírito de Ourique, que não é apenas um fato histórico português, mas uma teofania fundacional, na qual o Rei Dom Afonso Henriques recebe de Cristo a missão de instaurar uma nação para servi-Lo; de outro, a espiritualidade da Divina Misericórdia, que brota da Polônia como um sinal escatológico para o mundo moderno, cuja corrupção exige que a misericórdia se erga como última âncora antes do juízo.

Ourique e Cracóvia. A espada e a misericórdia. O rei e o servo. A nobreza e a cruz. Esses elementos não são, para mim, abstrações culturais. São realidades vivas que me constituem, que me moldam e que definem meu modo de estar no mundo. O próprio São João Paulo II, que me alcança espiritualmente através da linha sacramental da Crisma, compreendia isso profundamente. Quando, no alvorecer do seu pontificado, ergueu o brado “Non abbiate paura!”“Não tenhais medo!” —, ele falava como um rei espiritual, herdeiro da szlachta, falando ao mundo moderno como um novo Ourique, chamando os cristãos a reassumirem sua missão histórica.

Não é pequena a responsabilidade que isso me impõe. Ser parte dessa linhagem, ainda que na condição de leigo, é carregar o peso do brasão invisível da cruz, da defesa da verdade e do serviço ao Rei dos Reis. E é também um lembrete constante de que, na história da salvação, Deus não escolhe os mais fortes, os mais ricos ou os mais prestigiados. Ele escolhe os que estão dispostos a dizer "sim" — um fiat que se renova todos os dias, na oração, no estudo, no trabalho e no testemunho.

Se, algum dia, alguém escrever uma biografia intelectual sobre mim, terá que reconhecer que minha vida foi profundamente moldada por essa circunstância: a conexão viva entre o espírito de servir a Cristo em terras distantes — fundado no milagre de Ourique — e a espiritualidade da Divina Misericórdia, que brotou da Polônia para o mundo moderno como um remédio contra os horrores do século. E que essa ponte espiritual, que une Ourique a Cracóvia, me foi dada, não por mérito, mas por graça. E nela eu me movo, trabalho e vivo, nos méritos de Cristo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário