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quinta-feira, 12 de junho de 2025

Colheitas, Ciclo das Estações e Imposto de Renda: uma leitura simbólica da prestação de contas

Na vida das nações, certos ritos se repetem ano após ano, com precisão quase litúrgica. Um deles, tão secular quanto inevitável, é o momento em que o cidadão é chamado a prestar contas ao Estado: a declaração do imposto de renda. No Brasil, esse rito ocorre entre os meses de março e maio; nos Estados Unidos, embora o prazo final seja também em abril, setembro marca o encerramento do ano fiscal e a publicação de dados decisivos como o payroll, indicador do desempenho do mercado de trabalho. A coincidência entre esses momentos e as transições de estação — do verão para o outono — não é meramente casual. Há aí um simbolismo antigo, herdado da lógica das colheitas, das transições econômicas e da moral do trabalho.

O tempo da colheita e o ciclo agrário

No Brasil, a declaração do imposto de renda coincide com o fim do verão e o início do outono, tradicional tempo das colheitas no hemisfério sul¹. Mesmo em um país cada vez mais urbano e industrializado, a memória coletiva ainda carrega a herança de uma economia agrária: colhe-se o que foi plantado, calcula-se o fruto do trabalho, redistribui-se conforme a lei². A prestação de contas à Receita Federal, nesse contexto, ecoa o gesto ancestral do agricultor que separa os melhores frutos para oferecer como tributo, seja ao rei, ao templo ou à comunidade³.

De forma análoga, nos Estados Unidos, o mês de setembro — quando termina o ano fiscal do governo federal — marca também o fim do verão no hemisfério norte⁴. É quando se publicam indicadores cruciais como o relatório de emprego (payroll), que mede a saúde do mercado de trabalho⁵. A escolha desse momento não é arbitrária. Setembro é, historicamente, tempo de balanço, de fechar as contas do esforço produtivo, de medir o vigor da economia. Como no Brasil, há uma transição simbólica: o verão, estação do trabalho intenso e do crescimento, cede lugar ao outono, tempo de colheita e reflexão.

Do agrário ao industrial: a transição econômica e o rito fiscal

Essas datas não apenas se encaixam em ciclos naturais; elas também refletem uma transformação mais profunda: a transição da economia agrária para a industrial⁶. No Brasil, o outono marca o retorno à racionalidade produtiva após o consumo exuberante do verão — festas, férias, carnaval⁷. Nas empresas, inicia-se o planejamento do novo ciclo; nas famílias, recompõem-se os orçamentos. A declaração do imposto de renda surge como símbolo da responsabilidade fiscal, mas também da passagem do trabalho bruto para o cálculo refinado da economia moderna.

Nos Estados Unidos, onde o trabalho é frequentemente visto como um chamado moral e quase religioso⁸, o fechamento do ano fiscal e a medição do payroll funcionam como um espelho: ali está a prova dos frutos do esforço nacional. A prestação de contas não é apenas uma obrigação burocrática — é também um sinal de que o pacto social ainda funciona, de que o trabalhador responde à confiança do sistema⁹.

Prestação de Contas: entre a lei e a consciência

Ao prestar contas ao Estado, o cidadão moderno realiza um gesto que remonta a tradições muito mais antigas do que a burocracia tributária. Nas culturas bíblicas, oferecer os "primeiros frutos" era um ato de fé e reconhecimento: tudo o que se possui vem de Deus e retorna a Ele como forma de justiça¹⁰. No mundo contemporâneo, o imposto de renda substitui, de maneira secularizada, esse gesto: devolve-se à coletividade uma parte do que se obteve com o próprio trabalho¹¹.

Essa prestação de contas é, portanto, mais do que um cálculo. É também um exame de consciência. Quanto se produziu? Quanto se reteve? O que se fez com o tempo e os talentos recebidos?¹² Assim como o lavrador que colhe os frutos do campo e os apresenta diante dos anciãos, o cidadão moderno envia seus formulários à Receita como quem se submete ao juízo do tempo e da lei.

Um rito comum aos povos

O paralelo entre Brasil e Estados Unidos mostra que, apesar das diferenças culturais, há um fio comum que atravessa os povos: o reconhecimento cíclico da dependência do tempo, do esforço e da justiça. O rito fiscal não é apenas estatal — ele é, antes, humano. Está ligado à noção de que o trabalho deve ser medido, que a produção deve ser repartida e que o tempo exige respostas¹³. O verão é o tempo do trabalho; o outono, da prestação de contas.

E assim, entre colheitas e planilhas, entre estações e impostos, perpetua-se uma velha verdade: a de que não se pode viver sem responsabilidade. Porque colher sem prestar contas é roubo; e prestar contas sem ter colhido é engano. O justo equilíbrio entre o fazer e o responder define a dignidade do homem em sociedade.

Notas de rodapé

  1. Cf. IBGE. Ciclo Agrícola Brasileiro. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acesso em: jun. 2025.

  2. BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Vol. 1.

  3. Cf. LEVÍTICO 23:10-14. A festa das primícias exigia a entrega ao sacerdote dos primeiros frutos da colheita.

  4. US Government Fiscal Year: começa em 1º de outubro e termina em 30 de setembro do ano seguinte. Cf. Congressional Budget Office (CBO), 2024.

  5. Bureau of Labor Statistics. Nonfarm Payroll Employment Data. Disponível em: https://www.bls.gov.

  6. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

  7. Cf. CÂNDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz, 2000. A ideia da "racionalização do tempo" é central na transição modernizadora brasileira.

  8. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

  9. Cf. HAYEK, Friedrich A. O Caminho da Servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012.

  10. Cf. DEUTERONÔMIO 26:1-11. O ofertante diz: “Tomo hoje por testemunha ao Senhor que entrei na terra”.

  11. PIKETTY, Thomas. O Capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

  12. Cf. MATEUS 25:14-30. A parábola dos talentos associa responsabilidade individual ao juízo.

  13. ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. Nashville: Vanderbilt University Press, 1995.

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