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quinta-feira, 12 de junho de 2025

A República como Interregno: notas sobre a tradição monárquica e o municipalismo no Brasil

“A república é o interregno entre duas monarquias.”
— Aforismo tradicionalista

Resumo

Este artigo propõe uma leitura histórica da república brasileira como interregno entre duas formas legítimas de governo monárquico. A partir da análise do período regencial, da tradição municipalista portuguesa e da transição do governo colonial para o Império, argumenta-se que a monarquia brasileira constituiu uma continuidade orgânica da tradição política luso-brasileira. Já a república, surgida por imposição e não por aclamação, representa uma ruptura institucional. Conclui-se que a monarquia, enquanto regime de legitimidade e estabilidade, possui raízes mais profundas na cultura política brasileira do que a república moderna.

Palavras-chave: monarquia; república; municipalismo; tradição; Brasil-Império.

Introdução

A conhecida frase segundo a qual “a república é o interregno entre duas monarquias” contém mais do que um juízo valorativo: expressa uma visão sobre a natureza dos regimes políticos e suas relações com a tradição histórica dos povos. No Brasil, onde a monarquia não foi derrubada por um levante popular, mas por um golpe militar, essa sentença adquire relevância especial.

Este artigo busca investigar a hipótese de que a república brasileira constitui, em termos históricos, um interregno semelhante ao vivido durante o período regencial (1831–1840), sendo caracterizada pela descontinuidade institucional, instabilidade política e ausência de uma autoridade unificadora. Para isso, analisam-se os fundamentos do municipalismo português, a transição da colônia à monarquia imperial e o colapso dessa ordem com a proclamação da república.

1 A regência como prefiguração da República

Com a abdicação de D. Pedro I, em 1831, e a menoridade de seu filho, D. Pedro II, o Brasil ingressou em um período regencial marcado por instabilidade e experimentações políticas. A ausência do imperador provocou a necessidade de um arranjo transitório de poder, com regentes eleitos pelo Parlamento nacional, dentro da lógica da Constituição de 1824¹.

Durante essa fase, múltiplas revoltas regionais eclodiram, como a Farroupilha, a Cabanagem e a Sabinada, revelando a dificuldade de manter a coesão nacional sem a figura central do monarca². As tensões entre centralismo e autonomia provincial evidenciam um cenário semelhante ao da Primeira República (1889–1930), na qual o poder central também foi fragmentado e muitas vezes dominado por oligarquias regionais³.

2 O municipalismo português e a herança das câmaras 

A administração da monarquia portuguesa baseava-se fortemente nas câmaras municipais, instituições autônomas que garantiam a ordem local com base em costumes, direitos adquiridos e autoridade consuetudinária⁴. Importadas para o Brasil, essas câmaras tornaram-se o pilar da vida administrativa local durante o período colonial.

Segundo Oliveira Vianna, o Brasil sempre teve um espírito municipalista, que sobreviveu mesmo à centralização do Império⁵. A tradição lusa era aquela de subsidiariedade: o poder deveria ser exercido preferencialmente no nível mais próximo do cidadão, e só escalado ao centro em caso de necessidade. Essa lógica manteve-se com a transformação das câmaras em assembleias provinciais no século XIX.

3 A Corte como Substituta do Governador-Geral

A chegada da corte portuguesa ao Brasil em 1808 resultou na substituição do governador-geral pelo próprio monarca. Esse fato alterou profundamente o regime de poder: a colônia passou a ser governada diretamente pelo rei, sem intermediários, o que fortaleceu a identidade política do Brasil como sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves⁶.

Com a elevação do Brasil à condição de Reino Unido em 1815, a presença do monarca no território transformou o país em uma monarquia plena, reconhecida internacionalmente. As câmaras locais não foram abolidas, mas passaram a integrar uma estrutura imperial sob a autoridade direta do soberano. O rei, nesse novo arranjo, coordenava e não oprimia as instituições locais, mantendo a coesão sob um princípio de lealdade tradicional⁷.

4 A República como ruptura

A proclamação da república em 1889 se deu sem plebiscito, sem consulta popular e com explícita oposição de grande parte das elites imperiais. Tratou-se de um golpe de inspiração positivista, levado a cabo por setores militares, em desacordo com a cultura política até então predominante no país⁸.

A Primeira República instaurou um regime de disputas oligárquicas, sem coesão moral e institucional. A ausência de um “poder moderador” — como existia na monarquia — contribuiu para o surgimento de governos fracos, intermitentes ou autoritários⁹. O federalismo, imposto de cima para baixo, não se enraizou na prática local, em contraste com o municipalismo herdado da tradição lusa.

Como afirma José Murilo de Carvalho, a monarquia brasileira exercia um papel moderador essencial para a estabilidade institucional, algo que se perdeu com a adoção precipitada do modelo republicano¹⁰.

Conclusão

O percurso histórico revela que a monarquia não foi uma imposição exótica, mas o desdobramento natural da tradição política portuguesa no Brasil. Ela permitia a existência de poderes locais fortes sob a coordenação de um poder central legítimo e respeitado. A república, por outro lado, surge como imposição doutrinária, sem raízes na cultura do país.

Assim, dizer que a república é o interregno entre duas monarquias não é apenas nostalgia: é constatar que a república rompeu com a tradição, e que sua instabilidade reflete essa ruptura. O verdadeiro desafio contemporâneo é reencontrar a ordem perdida — seja por via institucional ou espiritual — restaurando a fidelidade à verdade, à tradição e ao bem comum.

Notas de Rodapé

  1. BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824.

  2. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000.

  3. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Globo, 2001.

  4. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e Poder no Império Português. Lisboa: ICS, 2009.

  5. VIANNA, Francisco de Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999.

  6. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

  7. COSTA, Emília Viotti da. A Monarquia e a Formação do Brasil. São Paulo: UNESP, 1994.

  8. LYRA, Heitor. História de Dom Pedro II: O Segundo Reinado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977.

  9. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

  10. CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 

Referências Bibliográficas

BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm. Acesso em: 12 jun. 2025.

CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

COSTA, Emília Viotti da. A Monarquia e a Formação do Brasil. São Paulo: UNESP, 1994.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Globo, 2001.

LYRA, Heitor. História de Dom Pedro II: O Segundo Reinado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977.

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Elites e Poder no Império Português. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2009.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2000.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

VIANNA, Francisco de Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999.

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