Pesquisar este blog

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O Construtor e O Crítico: um encontro entre Nicolau Maquiavel e José Ortega y Gasset

Resumo: 

Este artigo propõe um diálogo filosófico entre Nicolau Maquiavel (1469–1527), autor de O Príncipe, e José Ortega y Gasset (1883–1955), autor da célebre máxima “o homem é ele mesmo e sua circunstância”. Embora distantes no tempo e no estilo, ambos compartilham a convicção de que a política é uma arte que exige adaptação à realidade concreta. No entanto, divergem profundamente quanto ao papel da moral, da tradição e da técnica na formação do homem político. Enquanto Maquiavel pensa em termos de fundação e ruptura, Ortega pensa em termos de continuidade e superação. O primeiro opera como arquiteto do poder; o segundo como crítico da decadência moderna. Neste contraste está o valor filosófico do encontro entre ambos

1. Introdução: o realismo como ponto de partida

Maquiavel e Ortega y Gasset partem do mesmo princípio: é preciso olhar a realidade como ela é, não como gostaríamos que fosse. Ambos rejeitam idealismos descolados da experiência histórica, e se colocam no campo do realismo político e antropológico.

No entanto, as semelhanças param por aí. Maquiavel escreve como quem busca fundar uma nova ordem política a partir da ruína da Itália. Ortega escreve como quem tenta salvar uma cultura decadente da anomia espiritual e da mediocridade da “massa”. O primeiro é o teórico da virtù fundadora; o segundo, o profeta da razão vital e da consciência histórica.

2. Maquiavel: o arquiteto do poder

Maquiavel acredita que o poder pode e deve ser moldado por um homem excepcional, que saiba ler os sinais do tempo e impor ordem sobre o caos. Sua noção de virtù é ativa, criadora, modeladora. Em O Príncipe e nos Discorsi, defende que:

  • O governante deve saber usar o bem e o mal segundo a necessidade;

  • A moral comum não é suficiente para preservar o Estado;

  • A política é o campo da ação estratégica e da manipulação da fortuna.

A história é, para Maquiavel, matéria-prima para a fundação política. Ele não quer apenas compreendê-la: quer usá-la para instruir o novo governante. O tempo exige ação. E o bom político é aquele que sabe o que deve ser feito, mesmo que isso custe sua alma.

3. Ortega y Gasset: o crítico da modernidade sem forma

Ortega, por sua vez, é herdeiro de uma crise de sentido, não de uma crise de poder. Ele escreve num contexto em que o Estado já está formado, mas o homem perdeu sua alma e seu projeto de vida superior. Sua máxima — yo soy yo y mi circunstancia — significa que o homem não é essência nem substância isolada, mas ser histórico, situado, condicionado e responsável.

Para Ortega:

  • A política deve ser a expressão de uma cultura consciente de sua missão histórica;

  • A decadência começa quando os homens renunciam à dificuldade e se acomodam;

  • O papel da elite é cultivar um projeto comum de vida superior, sem o qual a democracia degenera em massa amorfa.

Ortega não propõe um príncipe, mas uma educação das consciências, um renascimento do espírito histórico. A tarefa é cultural antes de ser política.

4. Diferenças fundamentais

Tema Maquiavel Ortega y Gasset
Fundamento da ação Virtù política, eficaz, amoral Circunstância histórica e razão vital
Relação com a moral A política exige separação da moral tradicional A política deve estar fundada em um projeto de vida superior
Relação com a tradição Ruptura com o passado para refundar a ordem Recuperação da tradição como continuidade criadora
Figura central O Príncipe O homem consciente de sua missão histórica
Função do pensamento Ensinar como manter e conquistar o poder Ensinar a viver com autenticidade e responsabilidade histórica

5. Maquiavel como engenheiro; Ortega como arquiteto do espírito

Podemos dizer que Maquiavel pensa como um engenheiro político: diante do colapso da Itália, desenha os mecanismos necessários para erguer um novo edifício estatal. Ele admira Roma, mas quer adaptar sua lógica aos tempos modernos. É um realista com alma construtora.

Já Ortega é um arquiteto do espírito, preocupado com os alicerces invisíveis da civilização: cultura, responsabilidade, fidelidade à vocação. Ele denuncia a massificação da vida, o esquecimento da tradição e a perda da verticalidade espiritual. É um realista com alma trágica.

Ambos reconhecem que a realidade é resistência, mas divergem quanto ao caminho de superação:

  • Maquiavel quer dobrar a realidade com astúcia.

  • Ortega quer penetrar a realidade com compreensão.

6. Pontos de cruzamento

Há, ainda assim, cruzamentos:

  • Ambos reconhecem a centralidade do tempo como fator da ação.

  • Ambos rejeitam abstrações metafísicas estéreis.

  • Ambos entendem que o mundo se transforma a partir do discernimento das circunstâncias.

A virtù de Maquiavel é, de certo modo, a coragem de agir na tempestade. A razão vital de Ortega é a sabedoria de saber quem se é dentro da tempestade.

7. Conclusão: entre o príncipe e o nobre

Se Maquiavel modela o arquétipo do príncipe fundador, Ortega esboça o perfil do nobre intelectual, alguém que vive sua missão como forma de fidelidade à verdade de sua circunstância. Ambos têm algo a ensinar:

  • Maquiavel, que o poder é uma necessidade a ser compreendida e manejada com firmeza.

  • Ortega, que o poder sem espírito gera apenas forma sem substância.

Talvez, nos méritos de Cristo, a síntese verdadeira venha de outro lugar: nem só a virtù que domina, nem só a razão que compreende — mas a sabedoria que serve, que se faz pequena diante da vontade divina e paciente diante da história.

Referências:

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Il Principe. Milão: Garzanti.

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio.

  • ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madrid: Revista de Occidente, 1914.

  • ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas. Madrid: Espasa-Calpe, 1930.

  • NELSON, Eric. The Hebrew Republic. Harvard University Press, 2010.

  • RÉMOND, René. Introduction à l’histoire de notre temps. Seuil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário