Introdução
O voto pelo correio nos Estados Unidos é hoje um dos temas mais debatidos da política americana, frequentemente associado a discussões sobre acessibilidade, participação democrática e suspeitas de fraude eleitoral. Embora muitos associem sua origem à Guerra do Golfo (1990–1991), quando soldados americanos enviaram seus votos de bases no Oriente Médio, a história desse mecanismo remonta muito mais longe. Sua gênese está na Guerra Civil (1861–1865), sendo posteriormente consolidado em outras guerras e expandido ao longo das décadas.
1. O início: a Guerra Civil Americana
Durante a Guerra Civil, surgiu um problema inédito: centenas de milhares de soldados estavam distantes de seus estados natais, mas continuavam sendo cidadãos e, portanto, eleitores. Para não privá-los de exercer o direito ao voto, muitos estados criaram mecanismos excepcionais que permitiam o envio de cédulas dos campos de batalha para o domicílio eleitoral do militar¹.
Esse foi o embrião do voto ausente (absentee ballot), que mais tarde se tornaria parte permanente do sistema democrático americano.
2. Consolidação nas grandes guerras
O modelo foi aperfeiçoado nas duas Guerras Mundiais, quando milhões de americanos estavam em serviço fora do país. Novas regras federais padronizaram o processo, garantindo maior segurança e logística no envio das cédulas².
Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, mais de 3 milhões de soldados votaram a partir do exterior³. A experiência mostrou que o voto pelo correio não era apenas um improviso de guerra, mas uma necessidade estrutural de uma nação que frequentemente projeta seu poder além-mar.
3. O marco legal: UOCAVA (1986)
O Uniformed and Overseas Citizens Absentee Voting Act (UOCAVA), aprovado em 1986, estabeleceu uma base legal clara: militares, suas famílias e cidadãos americanos residentes fora dos EUA teriam o direito garantido de solicitar e enviar cédulas pelo correio⁴.
Assim, quando a Guerra do Golfo estourou em 1990, o voto pelo correio já estava regulamentado e plenamente operacional. O conflito apenas reforçou sua importância prática.
4. Da exceção à regra: expansão para civis
Com o passar das décadas, vários estados começaram a flexibilizar o uso do voto pelo correio:
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Décadas de 1970–1990: surgem os primeiros estados que permitem voto ausente “sem justificativa” (no-excuse absentee voting)⁵.
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Anos 2000 em diante: estados como Oregon, Colorado e Washington adotaram sistemas em que praticamente todas as eleições são conduzidas pelo correio⁶.
Essa mudança não tinha apenas caráter logístico, mas também buscava aumentar a participação eleitoral, facilitando o voto em regiões rurais ou entre eleitores com dificuldades de deslocamento.
5. A pandemia e a universalização temporária
A pandemia de COVID-19 em 2020 foi um divisor de águas. Muitos estados, visando reduzir aglomerações nos locais de votação, expandiram massivamente o voto pelo correio. Em alguns casos, como na Califórnia e Nevada, cédulas foram enviadas automaticamente a todos os eleitores registrados⁷.
O resultado foi uma participação eleitoral recorde, mas também a intensificação das acusações de fraude e manipulação eleitoral. Embora estudos mostrem que os casos de fraude são estatisticamente insignificantes⁸, o tema entrou no centro do debate político, especialmente durante e após as eleições presidenciais de 2020.
6. Controvérsias atuais e perspectivas
Hoje, o voto pelo correio permanece garantido a militares e cidadãos no exterior pelo UOCAVA, mas vários estados revisam suas regras para os civis:
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Exigência de identificação mais rigorosa.
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Prazos curtos para recebimento de cédulas.
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Limites para a coleta de votos por terceiros (ballot harvesting)⁹.
Assim, a tendência futura é uma espécie de duplo sistema:
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Manutenção plena do voto pelo correio para militares e emigrantes.
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Restrições graduais para cidadãos residentes nos EUA, variando conforme o estado e a correlação de forças políticas locais.
Conclusão
O voto pelo correio nasceu de uma necessidade prática em tempos de guerra, amadureceu como ferramenta de cidadania em uma sociedade cada vez mais móvel e foi testado em sua máxima escala durante a pandemia. O embate atual em torno de sua legitimidade não é apenas técnico, mas profundamente político: enquanto uns o defendem como expressão de inclusão democrática, outros o veem como um risco à integridade eleitoral.
Seja como for, o voto pelo correio nos EUA dificilmente desaparecerá. O que se projeta é uma diferenciação mais nítida: de um lado, soldados e emigrantes continuarão amparados por lei federal; de outro, cidadãos dentro dos Estados Unidos enfrentarão regras estaduais cada vez mais ajustadas, refletindo o embate entre acessibilidade e segurança no coração da democracia americana.
Notas de rodapé
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Keyssar, Alexander. The Right to Vote: The Contested History of Democracy in the United States. New York: Basic Books, 2000.
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Harrison, Brian. A More Convenient Season: Absentee Voting in American History. Journal of American History, 2010.
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Ewald, Alec C. The Way We Vote: The Local Dimension of American Suffrage. Nashville: Vanderbilt University Press, 2009.
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U.S. Congress. Uniformed and Overseas Citizens Absentee Voting Act (UOCAVA), Public Law 99-410, 1986.
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Fortier, John C. Absentee and Early Voting: Trends, Promises, and Perils. Washington, DC: AEI Press, 2006.
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Gronke, Paul. “Voting by Mail and Turnout in Oregon: Lessons for National Reform.” Electoral Studies 24, no. 4 (2005).
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Alvarez, R. Michael; Hall, Thad E. Point, Click, and Vote: The Future of Internet Voting. Washington, DC: Brookings Institution Press, 2004.
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Brennan Center for Justice. The Truth About Voter Fraud. New York University School of Law, 2007.
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Minnite, Lorraine C. The Myth of Voter Fraud. Ithaca: Cornell University Press, 2010.
Bibliografia
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Alvarez, R. Michael; Hall, Thad E. Point, Click, and Vote: The Future of Internet Voting. Washington, DC: Brookings Institution Press, 2004.
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Brennan Center for Justice. The Truth About Voter Fraud. New York University School of Law, 2007.
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Ewald, Alec C. The Way We Vote: The Local Dimension of American Suffrage. Nashville: Vanderbilt University Press, 2009.
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Fortier, John C. Absentee and Early Voting: Trends, Promises, and Perils. Washington, DC: AEI Press, 2006.
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Gronke, Paul. “Voting by Mail and Turnout in Oregon: Lessons for National Reform.” Electoral Studies 24, no. 4 (2005).
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Harrison, Brian. A More Convenient Season: Absentee Voting in American History. Journal of American History, 2010.
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Keyssar, Alexander. The Right to Vote: The Contested History of Democracy in the United States. New York: Basic Books, 2000.
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Minnite, Lorraine C. The Myth of Voter Fraud. Ithaca: Cornell University Press, 2010.
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U.S. Congress. Uniformed and Overseas Citizens Absentee Voting Act (UOCAVA), Public Law 99-410, 1986.
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