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segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Do campo de batalha à pandemia: a história e as controvérsias do voto pelo correio nos Estados Unidos

Introdução

O voto pelo correio nos Estados Unidos é hoje um dos temas mais debatidos da política americana, frequentemente associado a discussões sobre acessibilidade, participação democrática e suspeitas de fraude eleitoral. Embora muitos associem sua origem à Guerra do Golfo (1990–1991), quando soldados americanos enviaram seus votos de bases no Oriente Médio, a história desse mecanismo remonta muito mais longe. Sua gênese está na Guerra Civil (1861–1865), sendo posteriormente consolidado em outras guerras e expandido ao longo das décadas.

1. O início: a Guerra Civil Americana

Durante a Guerra Civil, surgiu um problema inédito: centenas de milhares de soldados estavam distantes de seus estados natais, mas continuavam sendo cidadãos e, portanto, eleitores. Para não privá-los de exercer o direito ao voto, muitos estados criaram mecanismos excepcionais que permitiam o envio de cédulas dos campos de batalha para o domicílio eleitoral do militar¹.

Esse foi o embrião do voto ausente (absentee ballot), que mais tarde se tornaria parte permanente do sistema democrático americano.

2. Consolidação nas grandes guerras

O modelo foi aperfeiçoado nas duas Guerras Mundiais, quando milhões de americanos estavam em serviço fora do país. Novas regras federais padronizaram o processo, garantindo maior segurança e logística no envio das cédulas².

Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, mais de 3 milhões de soldados votaram a partir do exterior³. A experiência mostrou que o voto pelo correio não era apenas um improviso de guerra, mas uma necessidade estrutural de uma nação que frequentemente projeta seu poder além-mar.

3. O marco legal: UOCAVA (1986)

O Uniformed and Overseas Citizens Absentee Voting Act (UOCAVA), aprovado em 1986, estabeleceu uma base legal clara: militares, suas famílias e cidadãos americanos residentes fora dos EUA teriam o direito garantido de solicitar e enviar cédulas pelo correio⁴.

Assim, quando a Guerra do Golfo estourou em 1990, o voto pelo correio já estava regulamentado e plenamente operacional. O conflito apenas reforçou sua importância prática.

4. Da exceção à regra: expansão para civis

Com o passar das décadas, vários estados começaram a flexibilizar o uso do voto pelo correio:

  • Décadas de 1970–1990: surgem os primeiros estados que permitem voto ausente “sem justificativa” (no-excuse absentee voting)⁵.

  • Anos 2000 em diante: estados como Oregon, Colorado e Washington adotaram sistemas em que praticamente todas as eleições são conduzidas pelo correio⁶.

Essa mudança não tinha apenas caráter logístico, mas também buscava aumentar a participação eleitoral, facilitando o voto em regiões rurais ou entre eleitores com dificuldades de deslocamento.

5. A pandemia e a universalização temporária

A pandemia de COVID-19 em 2020 foi um divisor de águas. Muitos estados, visando reduzir aglomerações nos locais de votação, expandiram massivamente o voto pelo correio. Em alguns casos, como na Califórnia e Nevada, cédulas foram enviadas automaticamente a todos os eleitores registrados⁷.

O resultado foi uma participação eleitoral recorde, mas também a intensificação das acusações de fraude e manipulação eleitoral. Embora estudos mostrem que os casos de fraude são estatisticamente insignificantes⁸, o tema entrou no centro do debate político, especialmente durante e após as eleições presidenciais de 2020.

6. Controvérsias atuais e perspectivas

Hoje, o voto pelo correio permanece garantido a militares e cidadãos no exterior pelo UOCAVA, mas vários estados revisam suas regras para os civis:

  • Exigência de identificação mais rigorosa.

  • Prazos curtos para recebimento de cédulas.

  • Limites para a coleta de votos por terceiros (ballot harvesting)⁹.

Assim, a tendência futura é uma espécie de duplo sistema:

  • Manutenção plena do voto pelo correio para militares e emigrantes.

  • Restrições graduais para cidadãos residentes nos EUA, variando conforme o estado e a correlação de forças políticas locais.

Conclusão

O voto pelo correio nasceu de uma necessidade prática em tempos de guerra, amadureceu como ferramenta de cidadania em uma sociedade cada vez mais móvel e foi testado em sua máxima escala durante a pandemia. O embate atual em torno de sua legitimidade não é apenas técnico, mas profundamente político: enquanto uns o defendem como expressão de inclusão democrática, outros o veem como um risco à integridade eleitoral.

Seja como for, o voto pelo correio nos EUA dificilmente desaparecerá. O que se projeta é uma diferenciação mais nítida: de um lado, soldados e emigrantes continuarão amparados por lei federal; de outro, cidadãos dentro dos Estados Unidos enfrentarão regras estaduais cada vez mais ajustadas, refletindo o embate entre acessibilidade e segurança no coração da democracia americana.

 

Notas de rodapé

  1. Keyssar, Alexander. The Right to Vote: The Contested History of Democracy in the United States. New York: Basic Books, 2000.

  2. Harrison, Brian. A More Convenient Season: Absentee Voting in American History. Journal of American History, 2010.

  3. Ewald, Alec C. The Way We Vote: The Local Dimension of American Suffrage. Nashville: Vanderbilt University Press, 2009.

  4. U.S. Congress. Uniformed and Overseas Citizens Absentee Voting Act (UOCAVA), Public Law 99-410, 1986.

  5. Fortier, John C. Absentee and Early Voting: Trends, Promises, and Perils. Washington, DC: AEI Press, 2006.

  6. Gronke, Paul. “Voting by Mail and Turnout in Oregon: Lessons for National Reform.” Electoral Studies 24, no. 4 (2005).

  7. Alvarez, R. Michael; Hall, Thad E. Point, Click, and Vote: The Future of Internet Voting. Washington, DC: Brookings Institution Press, 2004.

  8. Brennan Center for Justice. The Truth About Voter Fraud. New York University School of Law, 2007.

  9. Minnite, Lorraine C. The Myth of Voter Fraud. Ithaca: Cornell University Press, 2010.

Bibliografia

  • Alvarez, R. Michael; Hall, Thad E. Point, Click, and Vote: The Future of Internet Voting. Washington, DC: Brookings Institution Press, 2004.

  • Brennan Center for Justice. The Truth About Voter Fraud. New York University School of Law, 2007.

  • Ewald, Alec C. The Way We Vote: The Local Dimension of American Suffrage. Nashville: Vanderbilt University Press, 2009.

  • Fortier, John C. Absentee and Early Voting: Trends, Promises, and Perils. Washington, DC: AEI Press, 2006.

  • Gronke, Paul. “Voting by Mail and Turnout in Oregon: Lessons for National Reform.” Electoral Studies 24, no. 4 (2005).

  • Harrison, Brian. A More Convenient Season: Absentee Voting in American History. Journal of American History, 2010.

  • Keyssar, Alexander. The Right to Vote: The Contested History of Democracy in the United States. New York: Basic Books, 2000.

  • Minnite, Lorraine C. The Myth of Voter Fraud. Ithaca: Cornell University Press, 2010.

  • U.S. Congress. Uniformed and Overseas Citizens Absentee Voting Act (UOCAVA), Public Law 99-410, 1986.

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