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sábado, 30 de agosto de 2025

O “tiro no côco” e a rejeição à caridade

Em certa ocasião, o presidente João Figueiredo, último governante do regime militar brasileiro, foi interpelado por uma criança: “O que o senhor faria se vivesse de salário mínimo?” A resposta atravessou a memória coletiva: *“Daria um tiro no côco.”*¹ A frase, além da grosseria, evidencia uma recusa em admitir a realidade dura da maioria da população. Mas mais do que um episódio histórico, ela pode ser lida como metáfora espiritual.

Suponhamos que um ser ainda na pequena via — a etapa inicial da vida cristã, onde se aprende a confiar em Deus e a aceitar a própria pequenez — perguntasse a alguém com potencial de sancionado pela Lei Magnitsky² se aceitaria viver de caridade. A resposta, provavelmente, seria equivalente à de Figueiredo: um repúdio violento, como um “tiro no côco”.

A pequena via: o caminho da confiança

Santa Teresinha do Menino Jesus definiu a “pequena via” como o abandono confiante à misericórdia divina, no reconhecimento de que nada temos de nós mesmos³. Nesse itinerário espiritual, viver de caridade não é humilhação, mas plenitude, pois significa confiar na providência que se manifesta no amor dos outros. Como disse São Paulo: “Nada tenho que não tenha recebido” (1Cor 4,7).

O sancionado e a falsa autonomia

O oposto da pequena via é a lógica do poder corrupto. A Lei Magnitsky, aprovada inicialmente nos EUA em 2012, pune indivíduos envolvidos em violações graves de direitos humanos e corrupção⁴. Quem é alvo de tais medidas é, via de regra, alguém que acumulou riqueza ilícita e depende da aparência de soberania para manter seu prestígio. Para tais pessoas, viver de caridade seria abdicar não apenas de bens, mas da identidade construída sobre o domínio.

Cristo advertiu: “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mt 19,23-24). A dificuldade não é a posse material em si, mas o apego que torna impossível reconhecer a própria dependência de Deus.

A recusa da caridade como morte interior

O “tiro no côco”, nesta leitura simbólica, representa uma incapacidade de aceitar a graça. O homem que idolatra o poder vê na caridade não a expressão do amor, mas um atentado contra sua vaidade. Assim como Figueiredo não concebia viver com salário mínimo, também o sancionado não concebe viver de esmola.

No entanto, para a fé cristã, recusar a caridade é recusar a vida. A Escritura é clara: “Se alguém tiver bens deste mundo e vir seu irmão padecer necessidade, mas lhe fechar o coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (1Jo 3,17). A incapacidade de receber ou dar caridade é, portanto, sinal de morte espiritual.

Conclusão

A analogia entre o episódio histórico e o campo espiritual mostra que o apego aos bens e ao prestígio deforma o olhar. O ser na pequena via aceita sua pequenez e se abre ao dom; o sancionado, preso à ilusão da autossuficiência, prefere “dar um tiro no côco” a se deixar amar. Em termos cristãos, a verdadeira dignidade não está em não precisar dos outros, mas em reconhecer que tudo é graça.

Notas

  1. Declaração de João Figueiredo a uma criança que lhe perguntou sobre viver com salário mínimo, noticiada na imprensa brasileira no início da década de 1980.

  2. Refere-se à Lei Magnitsky Global (2016), derivada do Magnitsky Act de 2012, sancionada nos EUA, que pune agentes de violações de direitos humanos e corrupção.

  3. Santa Teresinha do Menino Jesus, Manuscritos Autobiográficos (Manuscrito C, 2v).

  4. Sobre a Lei Magnitsky, ver: “The Global Magnitsky Human Rights Accountability Act”, U.S. Code, 22 USC §2656 (2016).

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