A língua portuguesa apresenta um fenômeno curioso na palavra “privada”, que possui dois significados social e culturalmente distintos. De um lado, refere-se ao vaso sanitário, objeto cotidiano de uso pessoal, associado à eliminação de resíduos do corpo humano. De outro, designa a iniciativa privada, conceito central na economia e na sociedade contemporânea, referindo-se às atividades e empresas pertencentes a indivíduos ou grupos particulares, em oposição ao setor público1.
Essa polissemia permite reflexões que vão além da mera semântica. Para falantes nativos de línguas como o espanhol, a tradução literal de “iniciativa privada” poderia soar como “iniciativa inodora”, gerando uma ironia involuntária: se a iniciativa privada é, de fato, inodora, então ela estaria sempre livre de corrupção, influência política indevida ou desvios éticos2. A experiência prática, entretanto, mostra que essa “inodorização” é uma falácia. Assim como uma privada não higienizada exala odores evidentes, a atuação de grandes empresários sobre agentes políticos produz efeitos palpáveis, ainda que a retórica econômica e jurídica tente negá-los3.
O conhecido ditado popular “dinheiro não tem cheiro” reforça a tentativa de dissociar o capital da ética4. Na teoria, a neutralidade do dinheiro permitiria transações e investimentos sem contaminação moral. Na prática, porém, quando se observa a influência de interesses privados sobre decisões públicas, fica evidente que a iniciativa privada não é imune a cheiros, metáfora para os efeitos visíveis da corrupção, do clientelismo ou da captura institucional5.
A análise linguística, nesse caso, ilumina questões sociais e políticas. A polissemia de “privada” cria um espaço para crítica irônica: enquanto o termo econômico tenta transmitir eficiência, liberdade e autonomia, o termo cotidiano remete à sujeira, à necessidade de limpeza e ao inevitável impacto das ações humanas6. Esta dualidade evidencia que o discurso econômico e político nem sempre reflete a realidade social, sendo a linguagem um instrumento tanto de compreensão quanto de ocultação de processos de poder7.
Em síntese, a reflexão sobre a palavra “privada” e suas implicações mostra que a linguagem, mesmo em pequenas expressões do dia a dia, carrega a possibilidade de revelar contradições entre teoria e prática, entre retórica e experiência concreta. A iniciativa privada, portanto, não é inodora: suas ações, intenções e consequências sempre podem ser percebidas, tal como o odor de uma privada mal cuidada denuncia o descuido de quem a utiliza.
Bibliografia
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Smith, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ↩
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Eco, Umberto. Semiótica e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1984. ↩
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Stiglitz, Joseph E. O Preço da Desigualdade. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012. ↩
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Mauss, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. Lisboa: Edições 70, 2002. ↩
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Acemoglu, Daron; Robinson, James A. Por Que as Nações Fracassam. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. ↩
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Lakoff, George; Johnson, Mark. Metáforas da Vida Cotidiana. São Paulo: Editora UNESP, 2003. ↩
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Foucault, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 2011. ↩
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