A historiografia da Idade Média costuma se concentrar na Europa Ocidental, no Sacro Império Romano-Germânico e no Império Bizantino, incluindo eventos importantes como as cruzadas, as invasões árabes na Península Ibérica ou o surgimento do Islã. Em contraste, a história medieval da Europa Oriental, da Rússia e do Cáucaso é frequentemente negligenciada, em grande parte pela distância em relação aos principais acontecimentos e centros de poder da época. Muitos reinos e impérios dessa região permaneceram obscuros e acabaram esquecidos.
Um desses estados foi a Cazária, um reino que se estendeu desde o Cáucaso até grande parte da Ucrânia, e que se destacou por ter adotado o judaísmo como religião oficial em plena Idade Média.
Origem dos cázaros
A origem dos cázaros, povo que deu nome ao reino, ainda é envolta em mistério. Sabe-se apenas que pertenciam ao conjunto das tribos túrquicas, mas sua filiação exata dentro desse grupo permanece incerta¹.
A hipótese mais aceita é a de que os cázaros resultaram da fusão de diferentes tribos túrquicas que migraram para a região do Cáucaso em algum momento no início da Idade Média. O reino da Cazária surgiu por volta do ano 618, durante a dissolução do Império Turco Ocidental, e consolidou sua presença no Cáucaso por volta de 650².
Expansão e relações externas
Nos séculos VII e VIII, os principais rivais dos cázaros foram os búlgaros do Volga, que também haviam se separado do Império Turco Ocidental. Após derrotá-los, os cázaros expandiram-se para a região do Mar Negro e da Crimeia.
A partir de 720, Bizâncio e a Cazária firmaram uma aliança contra os árabes, que buscavam penetrar no Cáucaso e na Europa Oriental. Durante esse período, a Cazária atuou como estado tampão, resistindo a sucessivos ataques islâmicos³.
Conversão ao judaísmo
Por volta de 740, chegou ao reino uma importante leva de judeus vindos do Oriente Médio, fugindo de perseguições bizantinas e persas. A elite cazara iniciou, então, um processo de conversão ao judaísmo que se concluiu oficialmente em 861, sob o rei Bulan, que declarou a religião como oficial⁴.
A escolha teve forte motivação política: diferenciar-se do cristianismo (tanto católico quanto ortodoxo) e do Islã, evitando a subordinação a uma autoridade religiosa externa. Além disso, a medida incentivava a imigração judaica e fortalecia a economia do reino, inserido na Rota da Seda⁵.
O sucessor de Bulan, o rei Avdias, construiu sinagogas, escolas judaicas e introduziu práticas como a circuncisão. Ainda assim, a conversão ficou restrita principalmente às elites. A população comum manteve, em sua maioria, suas crenças originais.
A estrutura institucional incluiu um Tribunal Supremo, composto por dois representantes cristãos, dois muçulmanos, dois judeus e um pagão, refletindo a diversidade religiosa do reino⁶.
Apogeu e declínio
No século IX, a Cazária atingiu seu auge territorial e econômico, sendo considerada um dos estados mais avançados da região. Contudo, no século X, sofreu ataques de vikings (rus’ de Kiev), búlgaros e pechenegues.
O golpe fatal veio em 965, quando o príncipe Sviatoslav I de Kiev derrotou os cázaros e tomou a fortaleza de Sarkel. A partir desse momento, o reino ficou isolado, sem aliados confiáveis. O declínio se aprofundou após 987, quando o príncipe Vladimir I de Kiev converteu-se ao cristianismo ortodoxo e selou aliança com Bizâncio.
Em 1016, forças conjuntas rus’-bizantinas infligiram uma derrota decisiva aos cázaros. O reino desapareceu gradualmente, sendo considerado extinto por volta de 1050⁷.
Legado histórico
Os cázaros não deixaram grande herança cultural direta, e seu povo desapareceu quase sem vestígios, salvo em crônicas estrangeiras. Ainda assim, a Cazária teve papel estratégico na contenção da expansão árabe e na articulação comercial eurasiática.
Em Israel, alguns autores chegaram a sugerir que os cázaros seriam descendentes das tribos perdidas de Israel, mas a maioria dos historiadores rejeita essa hipótese, considerando-a um revisionismo histórico usado para justificar a presença judaica no Oriente Médio⁸.
De todo modo, a Cazária passou para a história como o único estado medieval que, oficialmente, adotou o judaísmo como religião de Estado.
Notas de rodapé
¹ Brook, Kevin Alan. The Jews of Khazaria. 3ª ed. Rowman & Littlefield, 2018.
² Golden, Peter B. An Introduction to the History of the Turkic Peoples. Wiesbaden: Harrassowitz, 1992.
³ Noonan, Thomas S. “The Khazar Economy.” Archivum Eurasiae Medii Aevi, vol. 9, 1995.
⁴ Dunlop, Douglas M. The History of the Jewish Khazars. Princeton: Princeton University Press, 1954.
⁵ Artamanov, Mikhail I. Istoriya Khazar. Leningrado: Izdatel’stvo Gosudarstvennogo Universiteta, 1962.
⁶ Koestler, Arthur. The Thirteenth Tribe: The Khazar Empire and its Heritage. London: Hutchinson, 1976.
⁷ Golden, Peter B. Khazar Studies: An Historico-Philological Inquiry into the Origins of the Khazars. Budapest: Akadémiai Kiadó, 1980.
⁸ Brook, Kevin Alan. The Jews of Khazaria. 2018.
Bibliografia
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ARTAMANOV, Mikhail I. Istoriya Khazar. Leningrado: Izdatel’stvo Gosudarstvennogo Universiteta, 1962.
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BROOK, Kevin Alan. The Jews of Khazaria. 3ª ed. Lanham: Rowman & Littlefield, 2018.
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DUNLOP, Douglas M. The History of the Jewish Khazars. Princeton: Princeton University Press, 1954.
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GOLDEN, Peter B. An Introduction to the History of the Turkic Peoples. Wiesbaden: Harrassowitz, 1992.
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GOLDEN, Peter B. Khazar Studies: An Historico-Philological Inquiry into the Origins of the Khazars. Budapest: Akadémiai Kiadó, 1980.
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KOESTLER, Arthur. The Thirteenth Tribe: The Khazar Empire and its Heritage. London: Hutchinson, 1976.
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NOONAN, Thomas S. “The Khazar Economy.” Archivum Eurasiae Medii Aevi, vol. 9, 1995.
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