Em jogos como Life is Feudal: Your Own, o conhecimento da natureza é um elemento central para o progresso da civilização. Identificar os tipos de solo, compreender a flora e explorar a fauna não é apenas um detalhe estético: é um requisito para o desenvolvimento econômico, social e tecnológico. O mesmo ocorre na História, especialmente no contexto da expansão portuguesa no Novo Mundo, em que a leitura inteligente da natureza, somada à troca de saberes com povos indígenas e à observação das práticas rivais europeias, foi decisiva para o sucesso colonial.
O pescador como ictiólogo prático
Um exemplo notável está na atividade pesqueira. No Novo Mundo, pescadores se tornavam, pela prática, verdadeiros ictiólogos empíricos: observavam rotas migratórias, períodos de reprodução, hábitos alimentares e técnicas de captura das espécies desconhecidas para os europeus. Esse conhecimento, inicialmente restrito ao ofício, passava a circular em diferentes instâncias sociais:
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Guildas de pescadores e escolas coloniais atuavam como centros de transmissão e preservação do saber aplicado.
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Bares e tavernas portuárias funcionavam como lugares de sociabilidade onde relatos orais eram compartilhados entre marinheiros, viajantes e cronistas.
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Jornais coloniais reproduziam narrativas de pescadores, atraindo a atenção de naturalistas metropolitanos.
Assim, o saber prático dos pescadores se transformava em objeto de investigação científica, com naturalistas europeus — verdadeiros ictiólogos acadêmicos — buscando validar e ampliar o conhecimento inicial fornecido pela experiência popular1.
O ciclo do conhecimento: da prática à ciência
Esse movimento evidencia um ciclo fundamental:
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Observação prática (pescadores e colonos);
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Circulação social (guildas, bares, jornais);
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Sistematização científica (naturalistas e universidades).
Sem a primeira etapa, a ciência não teria base empírica sólida; sem a segunda, o saber ficaria restrito e não se tornaria patrimônio coletivo; sem a terceira, não haveria continuidade metodológica e teórica.
No jogo Life is Feudal, esse mesmo ciclo aparece em miniatura: o jogador observa a natureza, compartilha informações dentro de sua comunidade (aldeias ou assentamentos) e, ao acumular conhecimento, desenvolve tecnologias e avanços sociais.
O horizonte cristão da ciência colonial portuguesa
No caso português, o saber da natureza tinha um horizonte ainda maior: servir a Cristo em terras distantes. O domínio dos mares, a classificação das espécies e a observação sistemática do ambiente não eram apenas meios de enriquecimento, mas parte de uma missão espiritual. O conhecimento, ordenado pela fé, era instrumento de expansão civilizadora e de confirmação da ordem divina no Novo Mundo2.
Assim, tanto no jogo quanto na História, o progresso não nasce apenas da técnica, mas da integração entre ciência empírica, circulação social do saber e orientação espiritual. O pescador-anônimo-que-se-torna-ictiólogo é, nesse sentido, o símbolo perfeito de como o saber prático pode se converter em ciência e civilização.
Notas de Referência
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Veja, por exemplo, o estudo de Harold J. Cook, Matters of Exchange: Commerce, Medicine, and Science in the Dutch Golden Age (Yale University Press, 2007), que mostra como narrativas populares e relatos empíricos dos navegadores e comerciantes serviam de matéria-prima para o trabalho dos naturalistas europeus. ↩
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Charles R. Boxer, A Idade de Ouro do Brasil: Dores de Crescimento de uma Sociedade Colonial (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963), destaca como a ciência, a economia e a religião estavam entrelaçadas no projeto colonial português. ↩
Bibliografia
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BOXER, Charles R. A Idade de Ouro do Brasil: Dores de Crescimento de uma Sociedade Colonial. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963.
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COOK, Harold J. Matters of Exchange: Commerce, Medicine, and Science in the Dutch Golden Age. New Haven: Yale University Press, 2007.
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RUSSELL-WOOD, A. J. R. The Portuguese Empire, 1415–1808: A World on the Move. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1998.
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SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil (1500–1627). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1889.
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SERAFIM LEITE, S.J. História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa: Portugália, 1938-1950.
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