Introdução
O Projeto Desconexos nasce de uma experiência simples, mas reveladora: a ausência de internet. O que poderia ser motivo de frustração torna-se ocasião de disciplina e recolhimento. A proposta consiste em transformar esses momentos em espaço de escrita filosófica, ampliando depois para a prática da oralidade e, por fim, para o exercício público da liberdade de expressão em território favorável, notadamente sob a proteção da Primeira Emenda nos Estados Unidos.
Essa trajetória não é inédita: insere-se em uma tradição filosófica, espiritual e política que vai de Agostinho a Milton, de Marco Aurélio a Tocqueville, passando pela retórica clássica e pelo magistério social da Igreja.
1. A filosofia como resistência à desconexão
Sempre que faltar internet, o computador converte-se em terminal de registro filosófico. O tempo outrora consumido pela conectividade contínua torna-se ocasião de escrita meditativa.
Essa prática encontra paralelo na tradição dos diários de retiro. Santo Agostinho escreveu suas Confissões em forma de diálogo íntimo com Deus, buscando ordenar sua vida interior1. Marco Aurélio, em meio a campanhas militares, redigiu as Meditações como guia para si mesmo, não para o público2. Blaise Pascal, por sua vez, deixou fragmentos que seriam reunidos postumamente como Pensées, expressão de um itinerário espiritual e intelectual interrompido3.
Assim também no Projeto Desconexos: se não é possível publicar em tempo real, os rascunhos ficam armazenados, prontos para serem revisados e, eventualmente, publicados. O “desconexo” aqui não indica desordem, mas resistência à dependência do fluxo digital contínuo.
2. A extensão voluntária: da escrita à fala
O projeto amplia-se em uma dimensão voluntária: criar momentos de desconexão mesmo com internet disponível, como forma de higienização da mente. O recurso ao gravador MP4 permite registrar pensamentos falados, que depois podem ser transcritos.
A oralidade ocupa papel central na tradição ocidental. Para Aristóteles, a retórica é a faculdade de discernir, em cada caso, os meios de persuasão possíveis4. Cícero via nela a arte de unir sabedoria e eloquência, sapientia et eloquentia5. O treino da fala, nesse sentido, não é mera técnica, mas parte essencial do cultivo da razão comunicada.
Além disso, a prática da fala solitária tem valor terapêutico. Como nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, trata-se de um treinamento disciplinado, voltado a ordenar os movimentos interiores6. Nesse caso, a disciplina da fala liberta da inibição social e prepara o caminho para a comunicação pública em vídeo.
3. A Primeira Emenda como horizonte de liberdade
A etapa final do projeto é a transição do discurso privado ao discurso público. Contudo, essa transição não se dá em qualquer ambiente: depende da garantia de liberdade plena, assegurada pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos (1791).
John Milton já havia defendido, em sua célebre Areopagitica (1644), que a verdade não teme o confronto, pois só na livre disputa entre ideias se revela superior ao erro7. Alexis de Tocqueville, em A Democracia na América (1835-1840), identificou na liberdade de expressão um dos pilares da vitalidade democrática, permitindo que a sociedade civil corrigisse abusos do poder8.
O Papa Leão XIII, em Rerum Novarum (1891), reafirmou que a vida social deve se ordenar pela verdade e pela justiça, não pelas conveniências arbitrárias dos poderosos9. Nesse sentido, a liberdade de expressão não é apenas direito civil, mas exigência moral da própria vida em comunidade.
Assim, o deslocamento para os Estados Unidos não é mera estratégia geográfica, mas condição para que a palavra possa realizar sua vocação de testemunhar a verdade sem medo de perseguição.
Conclusão
O Projeto Desconexos configura-se como uma escada de progressão intelectual e espiritual:
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Escrita offline – transformar a ausência de internet em ocasião filosófica, como nos diários de retiro de Agostinho, Marco Aurélio e Pascal.
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Oralidade gravada – treinar a fala e a mente, em consonância com a tradição retórica e espiritual.
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Discurso público – exercer a liberdade de expressão sob a proteção da Primeira Emenda, realizando plenamente a missão de comunicar a verdade.
Trata-se, portanto, de um projeto que integra disciplina pessoal, prática pedagógica e estratégia política, testemunhando que a liberdade interior pode ser cultivada em qualquer circunstância até alcançar sua expressão mais alta: a palavra livre, dita em verdade diante de todos.
Notas
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Santo AGOSTINHO. Confissões. Trad. Maria Luísa Jardim Amarante. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. ↩
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MARCO AURÉLIO. Meditações. Trad. William Hazlitt. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ↩
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PASCAL, Blaise. Pensées. Paris: Gallimard, 1977. ↩
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ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. ↩
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CÍCERO. De Oratore. Trad. E.W. Sutton. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1942. ↩
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LOYOLA, Inácio de. Exercícios Espirituais. São Paulo: Loyola, 2000. ↩
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MILTON, John. Areopagitica. Londres, 1644. ↩
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TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ↩
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LEÃO XIII. Rerum Novarum. 1891. ↩
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