Introdução
Os jogos de estratégia histórica, como Sid Meier’s Colonization (1994), muitas vezes simplificam processos complexos para criar mecânicas jogáveis. No entanto, essas simplificações não deixam de ecoar estruturas históricas profundas. Um dos elementos mais reveladores do jogo é o sistema de coordenadas X/Y, combinado ao funcionamento do “porto europeu”. Essa mecânica, ainda que abstrata, revela paralelos significativos com o desenvolvimento da cartografia, o sistema colonial ibérico e a própria gênese do capitalismo financeiro, desde os Templários até a Carrera de Indias.
1. Coordenadas X/Y e a matematização do espaço
No jogo, o mapa é estruturado por coordenadas cartesianas que permitem ao jogador localizar, registrar e planejar movimentos. Essa escolha remete à objetivação matemática do espaço, que foi uma das condições fundamentais da expansão europeia entre os séculos XV e XVII.
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A introdução de mapas portulanos e, mais tarde, da longitude e latitude como instrumentos de navegação, tornou possível não apenas viajar mais longe, mas também controlar fluxos comerciais e militares.
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Assim como o jogador anota manualmente as características do terreno no jogo, os pilotos e cronistas coloniais faziam registros sistemáticos de ventos, correntes e recursos locais — documentos que se transformavam em instrumentos de poder geopolítico (CIPOLLA, 1965).
2. O porto europeu como metáfora da Carrera de Indias
O porto europeu em Colonization funciona como interface central de compra e venda de mercadorias, além de formar mão de obra especializada. Tal centralidade remete à Carrera de Indias, o sistema espanhol de frotas reguladas que concentrava o comércio atlântico em Sevilha (e depois Cádiz).
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A metrópole controlava entradas e saídas, garantindo que a riqueza colonial fosse canalizada e fiscalizada.
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No jogo, quando um navio chega à “High Seas”, a Europa absorve colonos, recursos e mercadorias, funcionando como um hub logístico e financeiro. Esse mecanismo ludificado espelha a lógica mercantilista: a colônia existe para abastecer a metrópole, enquanto a metrópole organiza a distribuição.
3. Europa como banco e terminal de passageiros
A função bancária implícita no porto europeu pode ser comparada ao sistema templário de letras de câmbio, desenvolvido na Idade Média.
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Um cavaleiro podia depositar recursos em Paris e sacar em Jerusalém; de modo análogo, em Colonization o jogador pode “depositar” mão de obra ou mercadorias na Europa e depois “sacar” em outra localidade do Novo Mundo.
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Essa abstração reduz custos e riscos de transporte, permitindo uma economia de tempo e segurança. Embora irrealista logisticamente, o recurso traduz uma prática real de equivalências monetárias e financeiras que possibilitaram a expansão europeia (BRAUDEL, 1979).
4. Geopolítica dos fluxos e centralidade da metrópole
A grande lição embutida no jogo é que o essencial não é o deslocamento físico em si, mas a gestão dos fluxos.
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A Europa não é apenas um espaço geográfico, mas uma máquina de centralização que transforma colônias dispersas em capital utilizável.
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A abstração do jogo, ao permitir o “estoque” de mão de obra e bens, espelha a capacidade das metrópoles de acumular e redistribuir riqueza em escala global.
Conclusão
O Colonization Classic cria, por meio de uma mecânica aparentemente artificial, um retrato profundo da lógica do sistema colonial: a centralidade da metrópole como banco, porto e mercado. O uso das coordenadas X/Y reflete a matematização do espaço que sustentou a expansão marítima; já o porto europeu espelha tanto a Carrera de Indias quanto as inovações bancárias templárias, ambos antecessores da modernidade capitalista.
Assim, o jogo, ao simplificar a história, paradoxalmente a revela em sua essência: a colonização não foi apenas um processo militar ou demográfico, mas sobretudo uma operação financeira, logística e geopolítica.
Referências
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BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
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CIPOLLA, Carlo M. Guns, Sails and Empires: Technological Innovation and the Early Phases of European Expansion, 1400-1700. London: Collins, 1965.
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CHAUNU, Pierre. Sevilha e a América nos séculos XVI e XVII. Lisboa: Cosmos, 1976.
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SUBRAHMANYAM, Sanjay. The Career and Legend of Vasco da Gama. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
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